Nunca fui muito fã de telenovelas. A última que vi chamava-se “Pedra Sobre Pedra” e diz-me a Wikipedia que já remonta a 1992, tinha eu 11 anos. Depois não casei com o Mauricio Mattar e desinteressei-me do formato. Mas mesmo as pessoas que não veem novelas no sentido clássico do termos às vezes gostam de ver outros programas que colmatam essa sede de intriga e de todos a engalfinharem-se com todos (seja no sentido de porrada, seja no sentido de lençóis de cetim). E acho que era por isso que eu era absolutamente vidrada num saudoso programa do VH1 da MTV chamado “Behind The Music”. Para quem não acompanhava, o “Behind The Music” era uma série documental que se focava nas bandas e nos artistas com a vida de bastidores mais sumarenta. E foi este gosto pelos bastidores das grandes e complexas bandas que me fez devorar o livro Daisy Jones And The Six (editado originalmente em 2019), uma ficção de autoria do fenómeno de Tik Tok e Bookgram Taylor Jenkins Reid.

O livro, altamente visual e com a capacidade de nos fazer acreditar que aquela banda ficcional existia mesmo, está escrito de um modo incomum, sendo uma série de excertos de entrevistas entrecortadas, replicando exatamente um “Behind The Music”. Era também uma escolha óbvia para adaptação audiviosivual. A mais rápida a conseguir os direitos foi a Amazon Prime, que estreia agora (esta sexta, 3 de março, saem os primeiros três tomos) a série de 10 episódios, assim como singles e um álbum da tal banda que até agora só existia no papel. A produção é da atriz Reese Witherspoon, que não entra na série — que tem, no geral, um elenco pouco conhecido.

[o trailer de “Daisy Jones & The Six”:]

A história gira em torno da mais famosa banda de rock dos anos 70, desde sua ascensão meteórica até à separação antes nunca devidamente explicada, no auge de popularidade. Tudo começa quando Billy Dunne toma possa da banda do seu irmão mais novo, Graham, criando assim os Dunne Brothers que, após muita insistência dos outros membros (a teclista Karen, o baixista Eddie e o baterista Warren), trocam de nome para The Six. Paralelamente, Daisy Jones, uma jovem de uma família abastada, recusa-se a ser só a musa de músicos wannabe e quer ela própria ser compositora e intérprete. O produtor de renome caído em insucesso Teddy Price acaba por juntá-los, criando assim uma banda de sucesso quase imediato — mas levando a vários confrontos entre Billy e Daisy. O que se passa a seguir não é assim tão difícil de adivinhar, mas não quero ser eu a cortar-vos o barato.

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A série mistura a abordagem documental do livro, com um tetris de depoimentos para a câmara (por vezes contraditórios), com o modelo mais habitual. Os criadores são da adaptação são Scott Neustadter e Michael H. Weber, que já trabalharam juntos em filmes como “500 Days Of Summer”, “The Fault Of Our Stars” ou “The Disaster Artist”. O elenco, tirando talvez Sam Claflin (“Hunger Games”, “Peaky Blinders”) como Billy Dunne, é composto por quase desconhecidos, talvez numa tentativa de acreditarmos mais que esta é uma banda real e não “olha ali o X de peruca e calças de couro”. Daisy Jones, personagem que se situa no eixo Stevie Nicks-Florence Welsh, é interpretada por Riley Keough (“Mad Max: Fury”), que na verdade é mais conhecida por ser a neta de Elvis Presley, filha da recentemente falecida Lisa Marie Presley.

Não há nada de errado com a série “Daisy Jones And The Six” — tirando, talvez, uns momentos mais canastrões de Claflin quando está em modo dramático nas cenas pseudo-documentais. As músicas são orelhudas, os desempenhos são credíveis, o guião é escorreito, a realização não inventa, mas cumpre bem o propósito. O problema de “Daisy Jones And The Six” é, na verdade, um problema que já vem do livro: o da fonte de inspiração ser mais avassaladora do que o produto final, num daqueles claros casos em que a ficção fica aquém de suplantar a realidade. É bastante óbvio para quem tenha um mínimo de cultura geral de música dos anos 70 reconhecer aqui os Fleetwood Mac. E tal é assumido mesmo por Jenkins Read, que teve a fagulha para a ideia ao ver o concerto The Dance, que a banda deu em 1997, o primeiro do regresso do guitarrista Lindsey Buckingham, que havia abandonado a banda depois da sua separação tumultuosa da vocalista Stevie Nicks. O espectáculo tem vários momentos tensos, incluindo as trocas de olhares enquanto ambos cantam músicas claramente autobiográficas — veio mais tarde a saber-se que ambos voltaram, momentaneamente, a envolver-se nesta altura. Atualmente, Stevie recusa-se a atuar com o ex-marido.

[os primeiros dois minutos da série:]

Mas a história conturbada dos Fleetwood Mac tem ainda mais episódios do que a relação entre Buckingham e Nicks — eu sei, eu vi o tal “Behind The Music”. Houve outros casais no grupo, assim como despedimentos, muitas drogas, e até um membro que saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou porque se juntou à seita The Children Of God. É difícil suplantar tudo isto. E a série, sendo uma boa novela (e digo-o sem um pingo de desdém) anda demasiado nas mesmas rotundas, aquelas que já sabemos exatamente onde vão sair. Arrisco que dez episódios é demasiado para isto, a não ser que haja um coelho na cartola (só foram facultados à imprensa seis episódios). Não é tempo perdido, especialmente para quem goste de rock clássico, mas falta uma certa dose de surpresa e irreverência que se notava menos só num livro de 350 páginas (que, já agora, está editado em Portugal pela Top Sellers).

Outro ponto no qual a série faz um bom trabalho, mas tira inevitavelmente magia do livro, é nas músicas. A obra original tem as letras escritas, ficando o leitor a imaginar, afinal, a que soaria “a mais popular banda dos anos 70”. Foram já lançados dois singles, “Regret Me” e “Look At Us Now (Honeycomb)”, e o dia da estreia é acompanhado pelo lançamento do álbum “Aurora”. A composição e produção é de Blake Mills (que já trabalhou com meio mundo, de Pink a Lana Del Rey), com a colaboração de músicos de renome como Phoebe Bridgers. O resultado final é competente e com potencial radiofónico (ou spotifónico, pronto) e, afinal, era inevitável dar corpo a músicas que eram pouco mais que imaginárias. Os temas são cantados e tocados pelos atores da série, sendo que Sam Claflin teve de aprender à pressa depois de um casting catastrófico. O próprio admite ter pouca cultural geral musical e, quando lhe perguntaram se podia cantar o “Come Together” (dos Beatles), terá dito “ah, aquela do Michael Jackson?”. Felizmente, a pandemia adiou as gravações mais de um ano, dando-lhe tempo para aprender a tocar guitarra, a cantar e a saber distinguir os músicos mais importantes do planeta uns dos outros.