Comecemos pelas boas notícias. Em França, há um novo restaurante com três estrelas Michelin: o La Marine, de Alexandre e Céline Couillon, em Noirmoutier. No campeonato do segundo e primeiro astro, saíram vencedores 4 e 39 projetos gastronómicos, respetivamente. Oito restaurantes receberam a Estrela Verde, dedicada ao compromisso com a sustentabilidade.
Agora, as más. Ao todo, 25 restaurantes perderam estrelas, contrariando a tendência imposta desde 2020: nesta altura, o guia “congelou” a queda dos astros, de forma a não prejudicar os negócios que viviam um período de extrema fragilidade, provocada pela pandemia Covid-19.
Essa política foi agora revista, ficou-se a saber mesmo antes da cerimónia do Guia, que decorreu na segunda-feira, 6 de março. Isto porque na semana anterior a Agence-FrancePress noticiou que reputado chef Guy Savoy, em Paris, tinha sido despromovido pelo Guia, perdendo um dos três astros, que mantinha há mais de 20 anos. A onda de choque francesa intensificou-se com o lançamento da segundo bomba Michelin: o projeto de Christopher Coutanceau, na costa sudoeste de França, também tinha perdido um dos três astros que detinha apenas desde 2020. Vamos a pormenores.
Primeira onda de choque: Guy Savoy perde uma estrela com duas décadas
Conscientes do impacto emocional e psicológico que as despromoções podem ter nos protagonistas gastronómicos (já lá vamos), o guia adotou uma política diferente, notificando aqueles que perdem as estrelas antes da cerimonia oficial. E, quando se trata de perdas no campeonato das três estrelas, não basta uma chamada telefónica — parece que a má notícia é dada, pelo menos em França, em pessoa. Foi o próprio diretor internacional do Guia Michelin a levar a má notícia ao chef, considerado já várias vezes o Melhor do Mundo, dirigindo-se ao histórico edifício Monnaie, onde fica a Casa da Moeda. Foi aqui que ambos tiveram uma “conversa privada”, descreveu Gwendal Poullennec.
“São restaurantes excecionais, como podem imaginar estas decisões são cuidadosamente consideradas e apoiadas por inúmeras visitas dos nossos inspetores ao longo do ano”, declarou o diretor à AFP na última semana de fevereiro. “Para decisões tão importantes, contamos não só com inspetores franceses, mas também com alguns de outros países“.
Os motivos sobre a perda dos astros não são tornados públicos, sendo, alegadamente, apenas reportados aos profissionais envolvidos. Não há, para já, pistas sobre aquilo que possa ter levado à retirada da terceira estrela do Savoy. “Estamos plenamente conscientes do impacto das nossas decisões para os restaurantes em causa, mas os nossos leitores esperam que as nossas recomendações sejam sérias e fiáveis, a fim de os orientar nas suas escolhas”, declarou ainda o diretor do Guia.
Com 69 anos, Guy Savoy é um nome incontornável da gastronomia francesa (e mundial). Detinha os três astros desde 2002 — os dois primeiros foram arrecadados nos cinco anos seguintes à abertura do restaurante. Foi em novembro de 2022, e pelo sexto ano consecutivo, considerado o Melhor Chef do Mundo pela La Liste, guia que seleciona os melhores restaurantes em torno do globo — uma espécie de 50 World’s Best em versão francesa.
Guy Savoy começou a sua jornada no mundo da gastronomia aos 15 anos, em 1968, trabalhando, ao longo de uma década com chefs em vários restaurantes franceses. A sua família tinha um restaurante, o La Buvette de l’Esplanade, em Bourgoin-Jallieu. Abriu o restaurante em nome próprio que acaba de perder a estrela em 1980. Sete anos depois, mudou o projeto gastronómico para um espaço maior, fixando-se na Monnaie, em maio de 2015. Mantém vários projetos — incluindo um GuySavoy Las Vegas, nos Estados Unidos.
Para terminar, dois dados curiosos: o chef também foi a figura que deu voz à personagem de sous-chef Horst, no filme da Pixar, “Ratatouille”. Gordon Ramsey, que trabalhou a seu lado, descreve-o como o seu mentor.
A estrela cadente de Coutanceau
A segunda viagem foi mais longa. Gwendal Poullennec guiou cerca de cinco horas para chegar a La Rochelle, cidade à beira-mar, junto à praia de La Concurrence, no sudoeste francês. É aqui que se localiza o restaurante em nome próprio de Christopher Coutanceau.
Poullennec gastou “o tempo necessário para o chef ouvir e entender” o porquê de os inspetores terem feito cair a terceira estrela do chef, disse um porta-voz do diretor internacional do guia, citado pelo Washington Post. E se no caso de Guy Savoy o choque da decisão deriva, em parte, da antiguidade do astro, neste caso acontece precisamente o contrário: o Christopher Coutanceau tinha sido distinguido com a terceira estrela em 2020.
O projeto gastronómico, que se dedica ao peixe e marisco frescos, respeitando “escrupulosamente as estações do mar e o ciclo biológico das espécies”, lê-se no site, comentou a perda da estrela numa publicação de Facebook, onde o chef surge com a sua equipa numa fotografia: “As nossas equipas e nós mesmos tomámos nota da decisão do Guia Michelin. Estamos a manter o rumo e continuaremos, como sempre fizemos, a trabalhar nas nossas casas com paixão e dedicação aos nossos hóspedes”, lê-se na legenda.
Christopher Coutanceau, 44 anos, chef-pescador, como descreve a sua biografia, sempre teve uma forte ligação ao mar (que é o seu “jardim”). Detém três projetos gastronómicos inseridos na rede The Relais & Châteaux, que integra hotéis, restaurantes, vilas e resorts de luxo. Além do projeto em nome próprio, tem ainda o bistro La Yole de Chris, e o La Villa Grand Voile, inserido no La Villa Grand Voile hotel.
Na história das estrelas perdidas há quem tenha levado o caso à justiça. Em 2019, o francês Marc Veyrat tornou-se no primeiro chef a processar a Michelin, depois de ter perdido a terceira estrela no restaurante Le Maisond des Bois, em Haute-Savoier — aparentemente por causa do queijo utilizado no soufflé, detalhou a CNN. O tribunal não deu razão ao chef, que não conseguiu provar que a perda do astro teria causado danos ao seu negócio.
A decisão do guia em comunicar pessoalmente a perda das estrela poderá estar relacionada com o impacto tremendo que uma possível despromoção do guia já mostrou ter na saúde mental dos chefs. Em 2003, Bernard Loiseau, chef francês, suicidou-se e chocou o mundo da alta gastronomia. Os motivos permanecem desconhecidos, mas na altura, corria o rumor de que o La Côte d’Or, restaurante que dirigia em Saulieu, Burgundy, França, estava em risco de perder a terceira estrela.
Chefs. Quando a pressão das estrelas Michelin se torna insuportável
Em 2016, o chef franco-suíço Benoit Violier, responsável do Restaurant de l’Hotel de Ville com três estrelas Michelin e eleito o melhor do mundo pela francesa La Liste em dezembro de 2015, foi encontrado morto em sua casa, avançando-se como causa provável o suicídio. Tinha 44 anos. O caso trouxe de novo para cima da mesa o tema da saúde mental e da pressão sentida pelos cozinheiros de topo.