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“Tudo em Todo o lado ao mesmo tempo” ganhou quase todos os Óscares mais importantes na madrugada deste domingo. Era candidato a 11 estatuetas. Levou as de Melhor Filme, Realização, Atriz, Argumento Original, Montagem, Atriz Secundária e Ator Secundário. Como é que um filme sobre uma mulher entre universos paralelos que inclui mãos com dedos de salsichas, uma lavandaria e muito kung fu à mistura ascendeu a improvável favorito nesta temporada de prémios e pôs Hollywood a falar de empatia e representatividade?
O filme de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como “Daniels”, não seria o candidato óbvio para cair nas graças da Academia. A história é a de Evelyn Wang, imigrante chinesa nos Estados Unidos, matriarca à frente de uma lavandaria, que precisa de tratar dos seus impostos – e, já agora, organizar uma festa do Ano Novo Chinês – quando se vê arrastada para a missão de salvar o mundo. Evelyn tem de aprender a saltar entre universos para acessar a diferentes versões dela própria e assim concretizar a dita missão. Cada “salto” traz um universo novo e com ele uma nova camada de referências que tem feito as delícias de cinéfilos mundo afora. Está lá a melancolia e romantismo do cinema de Wong Kar Wai, o frenesim da cozinha de “Ratatouille”, o futurismo de Stanley Kubrick, os filmes de artes marciais, o kung-fu.
O ritmo da montagem lança o espectador para duas horas de uma experiência sensorial que às vezes se confunde com alucinação. E é essa viagem tresloucada por tantos mundos que torna “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” um filme singular que desafia as fronteiras entre géneros cinematográficos. Sob diferentes lentes pode ser categorizado como drama familiar, filme de ação, aventura, comédia e até pisar o terreno da ficção científica. Mas é indiscutível que é um filme sobre o multiverso, um multiverso absurdo que convenceu a crítica e o público.
Começando pela primeira. Os Óscares foram o culminar de uma rota imparável de vitórias nesta temporada de prémios. Uma das revelações do Festival de Sundance, o filme, produzido pelo estúdio independente A24, começou por vencer apenas nas categorias de representação nos Globos de Ouro. Nos BAFTA a fita só ganhou na Montagem, mas acabaria por conquistar os principais prémios atribuídos pelas associações de profissionais em Hollywood: prémios do Sindicato dos Atores (SAG Awards, no original em inglês), dos Produtores (PGA), Realizadores (DGA), e Argumentistas (WGA). Notava logo o The New York Times que só outros quatro filmes haviam conseguido tal feito: “Argo” (2012), “Quem Quer Ser Bilionário” (2008), “Beleza Americana” (1999) e “Este País Não é Para Velhos” (2007). E todos acabariam por vencer o Óscar de Melhor Filme. O caminho estava lançado para um desfecho feliz na noite que premeia os melhores dos melhores no cinema.
Já para o público, esta espécie de filme-unicórnio é mais do que uma bizarra cacofonia referencial. É, para muitos, também uma alusão ao sonho americano e uma homenagem à cultura chinesa. A história acompanha três gerações com as quais os espectadores se podem relacionar. O apelo do filme a famílias imigrantes é evidente e os mundos fragmentados em que o filme decorre representam as suas experiências e conflitos. “Ser um imigrante é viver num multiverso fraturado”, escreve a teórica Anne Anlin Cheng, da Univesidade de Princeton, no The Washington Post, a propósito da engenharia que torna este um “profundo filme asiático-americano”.
Desde a relação agridoce entre mãe e filha à relação complexa entre marido e mulher ou a dureza de lidar com um pai tradicional, a empatia pelas personagens estende-se a quem as representa fora do ecrã.
Michelle Yeoh, malaia de 60 anos, estrela de ação de Hong Kong dos anos 1980 e 1990, que desempenha o papel de protagonista, chegou a Hollywood já depois de uma carreira firmada enquanto atriz em Hong Kong. “Recebes argumentos e quando os anos passam, os números aumentam, os papéis parecem diminuir. Como sabes, enquanto mulher, e mulher asiática… de certa forma começam-te a pôr em caixas. É sempre o homem a ir à aventura e salvar o mundo”, contou à CNN. “Esta é uma mulher normal, asiática, imigrante, que está a lidar com problemas com os quais todos nos relacionamos”, explicou. “Adorei o facto de ser esta mulher normal que está a ser vista, a quem é dado um papel de super-herói”.
Yeoh é a primeira atriz de origem asiática a vencer um Óscar, e também a primeira a ser nomeada – facto relevante quando apenas uma mulher não-branca conquistou o Óscar de Melhor Atriz Principal. Nos quase 100 anos de história dos Óscares, só Halle Berry venceu uma estatueta dourada para protagonista pelo seu papel no filme “Monster’s Ball – Depois do Ódio”(2002). Mas Michelle Yeoh fez história desde logo com a sua vitória no SAG, tornando-se a primeira mulher asiática a vencer o prémio e a quarta mulher não-branca a consegui-lo, depois de Halle Berry, Viola Davis e Ma Rainey. “Este tem sido um ano incrível para o nosso pequeno filme que, sabe-se lá como, continua a fazer o seu caminho”, disse no discurso. “Filmes como estes muitas vezes não conseguem uma rampa de lançamento e vocês são o estúdio mais doido e arranjam sempre forma de arriscar em filmes como o nosso”, continuou, agradecendo ao A24, o estúdio independente nova-iorquino criado em 2012 que tem deixado marca no cinema contemporâneo. Entre as obras saídas do A24 estão “A Baleia”(2022), mas também “Moonlight”, Óscar de Melhor Filme em 2016, ou “Lady Bird” (2017), obra de estreia de Greta Gerwig. Outros títulos incluem “Spring Breakers” (2012), “Ex Machina” (2014), “The Lobster” (2015), “Room” (2015) ou “The Florida Project” (2017). Na televisão, são os responsáveis pela série de culto “Euphoria”.
Numa indústria em que tem sido historicamente difícil vingar para actores não-brancos, cada entrevista, discurso e aparição mediática da equipa do filme de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”, grande parte dela de origem asiática, tem sido utilizada pelo para mencionar a importância deste reconhecimento. Além da atriz, o elenco inclui Stephanie Hsu (“A Maravilhosa Sra. Maisel”), Ke Huy Quan (“Os Goonies” e “Indiana Jones E o Templo Perdido”), James Hong (“O Panda do Kung Fu”), Jamie Lee Curtis (“Halloween”), Jenny Slate (“Parks and Recreation” e “A Vida Secreta Dos Nossos Bichos 2”) e Harry Shum Jr. (“Glee”).
É de Ke Huy Quan outra das histórias inspiradoras que têm feito correr tinta (e carateres), dando mais visibilidade ao frenesim fora do filme. A ex-estrela infantil dos anos 80, com créditos em “Indiana Jones e o Templo Perdido”, acabaria por se tornar quase desconhecida dentro da própria indústria cinematográfica. “É um momento muito emotivo para mim. Recentemente disseram-me que se ganhasse aqui hoje seria o primeiro ator asiático a vencer nesta categoria”, disse Quan no palco do SAG Awards, ao receber o prémio pelo papel de Waymond Wang. “Quando ouvi isto percebi rapidamente que este momento já não me pertence apenas a mim. Também é de toda a gente que pediu por mudança”.
Quan, 51 anos, é natural de Saigon, no Vietname, e chegou a Los Angeles em 1979, depois de viver em Hong Kong enquanto refugiado. Depois dos papéis conquistados em criança, continuou a ir a audições, mas sem sucesso, relatou ao The New York Times. “Deixei de representar porque havia tão poucas oportunidades”, disse também no discurso nos prémios SAG. Foi ao ver o filme “Crazy Rich Asians” (2018), com um elenco asiático, que percebeu que queria voltar a representar. Leu o argumento de “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” e percebeu que o “queria mais de que tudo”, disse à estação de televisão norte-americana WBUR. “Achei que tinha sido escrito para mim”.
Ainda no palco dos SAG Awards, o ator deixou uma mensagem de esperança: “O panorama é tão diferente hoje do que antes”. “A todos aqueles que estão em casa a assistir, que estão com dificuldades e à espera para ser vistos, por favor continuem, o holofote vai encontrar-vos um dia.” Mais tarde, no palco dos Óscares, onde subiu para receber o galardão, manteve a tónica do discurso: “Os sonhos são algo em que temos de acreditar. Quase desisti dos meus. Para todos vocês por aí: mantenham os sonhos vivos.”
Daniels: de videoclipes ao palco dos Óscares
“Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” é escrito e realizado por Daniel Kwan e Daniel Scheinert, conhecidos como “Daniels”. É apenas a segunda longa-metragem da dupla, que assinou a primeira em 2016. “Swiss Army Man” conta a história de um homem perdido no deserto (Paul Dano), que acaba por encontrar um morto (Daniel Radcliffe) a meio do caminho. O filme não chegou às salas de cinema portuguesas.
Daniel Kwan e Daniel Scheinert conheceram-se enquanto alunos na Emerson College, universidade privada em Boston, EUA e têm um currículo ligado à música, tendo estado na criação de alguns videoclipes emblemáticos, como “Turn Down for What”, de DJ Snake e Lil Jone, ou “My Machines”, dos Battles. A viralidade ajudou a tornar os Daniels um nome de culto, mas ainda longe do reconhecimento conquistado com “Tudo em Todo o Lado Ao Mesmo Tempo”.
De resto, a explosão de ideias, conceitos, e referências, o frenesim das duas horas e três capítulos – “Tudo”, “em Todo o Lado”, “Ao Mesmo Tempo” – do filme não é novidade, antes estilo da dupla que agora se afirma. À Vulture, Larkin Seiple, diretor de fotografia dos Daniels, que os conhece desde a faculdade, recorda a forma como a dupla fazia pitch dos seus videoclipes. Sentavam-se, punham a música a tocar e narravam as ideias entusiasticamente, até um momento de catarse e revelação. “Era sempre algo estupidamente absurdo que te faz sentir alguma coisa”, diz Seiple.
No palco dos Óscares este domingo para aceitar o prémio de Melhor Realização, os realizadores seguiram as pisadas dos atores, e fizeram discursos alusivos às suas origens. “Somos todos produtos do nosso contexto. Somos todos descendentes de algo e de alguém e quero reconhecer esse contexto”, disse Daniel Kwan, que destacou ainda a importância do coletivo.
“Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” estreou-se nos cinemas portugueses há quase um ano, em Abril de 2022. Mais tarde, chegou ao pequeno ecrã, ao canal premium TVCine Top e desde então está disponível no serviço de vídeo on demand TVCine+. Depois das nomeações aos diversos prémios, o filme regressou às salas, onde ainda está em exibição por todo o país.