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“Ice Merchants”, de João Gonzalez, não venceu o Óscar para Melhor Curta-metragem de Animação na madrugada desta segunda-feira, em Los Angeles. Mas foi a primeira vez que um filme nacional esteve perto de receber um prémio da Academia de Hollywood. Numa mensagem gravada no Dolby Theatre e enviada aos jornalistas, o realizador confessou que, em conjunto com o produtor Bruno Caetano: “Não ficámos com o troféu, mas estamos muito felizes”.

“Queria agradecer a toda a gente em Portugal que nos apoiou, foi um carinho enorme que sentimos desde o início, a toda a equipa que fez isto possível. E acima de tudo à minha família, aos meus amigos, foram as pessoas que me influenciaram durante todos estes anos, no final acabaram por influenciar também indiretamente o filme”, disse João Gonzalez. Acrescentou ainda: “Foi uma vitória não só para a nossa equipa, mas também como forma de espalhar mais o cinema português, não só de animação, mas o cinema em geral.”

Já o produtor Bruno Caetano, agradeceu “ao Ministério da Cultura, ao ICA e à cidade do Porto, sem eles não poderíamos estar aqui”. Sobre agradecimentos, deixou-os também “à malta toda da Agência da Curta Metragem que nos ajudaram imenso nestes últimos dez meses. Agradecemos às nossas famílias e um abraço muito especial a todos os nossos colegas da família COLA, uma pequeníssima cooperativa de produção independente, conseguimos com um filme de animação, que tivemos imenso prazer e gosto em fazer, chegar aqui. Não poderíamos estar mais contentes, tem sido incrível, internacionalmente mas especialmente em Portugal o carinho tem sido mesmo muito. Têm-nos inundado com mensagens, têm ido às salas de cinema, têm feito tudo para nos fazer sentir bem, nós não podíamos estar mais gratos. Metemos o pezinho na água. Que venham os próximos agora e que mergulhem. É possível. Já cá estivemos.”

“Hoje é um dia muito feliz para o cinema português”, escreveu Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura, no Twitter, depois de conhecido o desfecho. “Parabéns ao João Gonzalez e à sua equipa, que com tenacidade, ambição e rasgo, criaram um filme comovente, que levará muitas pessoas a descobrir a capacidade singular do cinema de animação para tratar de temas complexos e adultos. Entre os espectadores, estão também os jovens que serão levados a desenvolver as suas próprias potencialidades criativas, e é importante que saibam que a emigração não é para eles o único caminho. A festa de hoje é do cinema de animação português no seu conjunto, uma área em que temos vindo a obter reconhecimento internacional crescente – e que agora, com ‘Ice Merchants’, chegará a um público muito mais alargado. Os Óscares são um começo, não são um fim”.

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Também o Presidente da República enalteceu o cinema de animação português. “Com ‘Ice Merchants’, o muito premiado cinema de animação português, e através dele todo o nosso cinema, esteve pela primeira vez representado numa cerimónia vista pelo mundo inteiro”, reagiu Marcelo Rebelo de Sousa. “Esta nomeação seguiu-se a outras distinções recebidas por João Gonzalez, tão jovem e já com um traço, um tom e um universo próprios, como reconheceram os European Film Awards ou o Festival de Cannes. Felicitando-o, deixo também uma palavra de elogio à determinação e ao talento do cinema de animação em Portugal”, lê-se no site da presidência da República.

“Ice Merchants” conta a história de um pai e um filho pequeno que vivem numa casa suspensa num penhasco e que, todos os dias, saltam de pára-quedas do precipício para chegarem até à vila onde vendem o gelo que apanham. Nesta rotina, evidencia-se a relação de proximidade, o peso da ausência, mas também a distância geracional.

Realizada por João Gonzalez, “Ice Merchants” tem produção maioritária de Bruno Caetano, da Cola Animation, Michael Proença, da Wild Stream, e da Royal College of Art, já que começou a ser desenvolvida em contexto escolar em Londres, onde Gonzalez, portuense de 26 anos, estudou. O jovem realizador foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, e, antes do mestrado na escola londrina, concluiu a licenciatura na Escola Superior de Media Artes e Design (ESMAD), no Porto.  Tem também formação clássica em piano, assumindo o papel de compositor e, por vezes, instrumentista nos filmes que realiza. “Tomo sempre conta da banda sonora, além da criação visual dos meus filmes. Começo a compor ainda antes dos testes visuais, por vezes. É uma fonte de inspiração”, disse em entrevista ao Observador, em janeiro.

Gonzalez conta com dois trabalhos anteriores, “The Voyager” (2017) e “Nestor” (2019). “Os meus filmes não têm falas porque eu não sei escrever, é mais fácil para mim. Mas em nenhum deles fazia sentido ter falas, não ia acrescentar nada à narrativa. Acho que se ia perder no meio filme, ia desviar da razão dos filmes existirem”, disse a respeito da importância do silêncio no seu trabalho, que, pelo menos para já, vai continuar na área da animação. “É a tal liberdade. A possibilidade de criar algo de raiz. A animação é uma porta para me descobrir mais a fundo, essa realidade metafísica que, normalmente, só encontramos em sonhos. Todos os meus filmes têm “uma missão” diferente, são sempre, de certa forma, pessoais, transmitem a forma como eu olho para a vida”, adiantou.

No caso de “Ice Merchants”, “o filme começou de uma forma muito peculiar”, explicou o produtor Bruno Caetano aquando da nomeação: “O João estava na Royal College of Art em Inglaterra, a fazer o curso de animação, e o projeto que ele fez era o projeto de final de curso. O João tinha, salvo erro, cerca de 30 segundos já animados. Entretanto vem a pandemia e tornou-se um pouco complicado trabalhar e finalizar o projeto de curso dele. No entanto, cruzámo-nos no final de 2019, no festival de Espinho, o Cinanima. Temos uma amiga em comum que também é uma das cooperantes da COLA. Ela não estava presente, mandou uma mensagem a dizer ‘tens de conhecer este gajo’. Travámos conhecimento, foi a primeira vez que falámos, por acaso partilhámos boas notícias nesse festival e começámos a falar um com o outro com mais frequência. Ele apresentou o projeto, achámos extremamente interessante e concorremos ao ICA. O João conseguiu o financiamento para primeiras obras e depois foi uma aventura”.

Aventura essa que incluiu “anos de produção”. “A equipa inicialmente era muito pequena”, recordou o produtor. “Era o João e a Ala Nunu, na equipa de animação, e eu a fazer produção, e à medida que fomos avançando foi entrando mais pessoal no projeto, até se tornar o filme que todos conhecem agora”, concluiu.

“Ice Merchants” foi primeiro filme português nomeado aos Óscares – a curta de animação “Feral”, de Daniel Sousa, em 2014, também alcançou a nomeação, porém, apesar de ter sido realizada por um português, a produção não era maioritariamente portuguesa.

A propósito da nomeação aos Óscares, em janeiro, o realizador João Gonzalez  admitiu o “efeito mediático” dos prémios. “Toda a gente sabe o que é. É uma possibilidade para espalharmos o nosso trabalho e para que mais oiçam e vejam a animação portuguesa. Mesmo para os media portugueses. Para que tudo esteja mais a par da qualidade do cinema português. Acho que essa é a maior satisfação. Chegar a mais gente”, afirmou ao Observador, lembrando a importância do reconhecimento da animação. “Ainda existe aquela ideia de que a animação é entretenimento para crianças. É uma grande barreira que está agora a ser deitada abaixo. É como se fosse o parente mais novo da imagem real, do “verdadeiro” cinema. É triste. Só comecei a entrar em contacto com a animação quando tive contacto com aquela que é mais autoral, que costuma estar mais fechada em festivais de cinema. São filmes extremamente adultos. Não costumo aconselhar a que entrem crianças nestas sessões. A animação não é um género, é um meio, é uma forma de fazer cinema também, não está direcionada a uma faixa etária em concreto.”

“Ice Merchants” estreou-se no ano passado na Semana da Crítica no Festival de Cinema de Cannes, em França, e desde então passou por uma centena de outros festivais e obteve mais de 40 prémios, com destaque para os Annie, os mais importantes prémios de animação do mundo.

Nos Óscares deste domingo, a curta-metragem portuguesa perdeu para “The Boy, the Mole, the Fox and the Horse”, do ilustrador britânico Charlie Mackesy. Concorria ao galardão também a canadiana “The Flying Sailor”, de Amanda Forbis e Wendy Tilby, “My Year of Dicks”, de Sara Gunnarsdóttir, sobre uma rapariga que tenta perder a virgindade, e ainda a curta de stop motion australiana “An Ostrich Told me the World is FAke and I Think I Believe It”, de Lachlan Pendragon.

João Gonzalez e “Ice Merchants”, primeiro filme português nomeado para os Óscares: “O que isto significa? Ainda não sei muito bem, confesso”

Em fevereiro, o produtor de “Ice Merchants” apelou ao financiamento para a reta final da curta rumo aos Óscares. Bruno Caetano falava então de uma “luta contra gigantes” em relação aos concorrentes. O Ministério da Cultura acabaria por assegurar as “despesas inerentes à promoção”, sustentando a necessidade do “reconhecimento do mérito” dos autores e do cinema português. “Não fazia sentido que tendo um filme sido nomeado para os Óscares – e apoiado pelo ICA [Instituto do Cinema e Audiovisual] na sua produção com 90.000 euros – não fosse igualmente apoiado nesta fase decisiva e que corresponde a um reconhecimento do mérito, em primeiro lugar, dos seus autores – em particular de João Gonzalez – mas também do cinema de animação português”, referiu fonte do Ministério da Cultura, à Lusa.

Numa iniciativa rara para uma curta-metragem, “Ice Merchants” está em exibição nos cinemas portugueses desde 16 de fevereiro. Está também disponível na plataforma de streaming Filmin e no videoclube da MEO, NOS, Vodafone e NOWO. O filme obteve cerca de 3.400 espectadores na semana de estreia nos cinemas, revelou à Lusa a distribuidora Cinemundo.