Bruno Caetano é um dos responsáveis da COLA, produtora dedicada ao audiovisual de animação — ou, como explica o texto de apresentação no site oficial, trata-se de um conjunto de especialistas “dedicados aos filmes de alta qualidade feitos à mão”. É um produtora, mas é uma cooperativa, em que cada um dos elementos que a compõe tem uma palavra nas decisões criativas e empresariais.

Além de Bruno Caetano, fazem parte da COLA outros oito produtores/realizadores/animadores, incluindo o agora nomeado João Gonzalez. Em conversa com o Observador, Caetano explica como foi feito “Ice Merchants”, nomeado para o Óscar de Melhor Curta-Metragem de Animação (o primeiro filme português a conseguir uma nomeação), como surgiu, fala-nos do sucesso que o filme foi recolhendo, explica-nos que produtora é esta, que trabalho tem desenvolvido e dá também a sua opinião sobre o presente (e futuro) do cinema de animação em Portugal.

[o “making of” de “Ice Merchants”:]

Como receberam a notícia da nomeação? Estavam todos juntos?
Foram momentos muito complicados. Estamos umas vinte e tal pessoas numa chamada, pessoas que trabalharam diretamente no filme, tanto em Portugal como lá fora. E o que aconteceu foi estranho: assim que nós vemos o nosso nome presente no anúncio dos Óscares, nos primeiros segundos há ali uma sensação de “estou a ler isto mal, isto não está a acontecer”. Mas depois, o entusiasmo de todos os que estavam na reunião e a berraria trouxeram-nos à realidade. E a partir daí bebemos todos um copo para celebrar.

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Surpreendidos ou já estavam à espera que pudesse acontecer?
Eu fiquei surpreendido. É lógico que uma pessoa tem sempre esperança. Eu e o João costumávamos dizer: “Até dia 24 podemos sonhar o que quisermos, até dia 24 o Óscar é nosso, depois a partir daí a coisa pode…” Mas bom, dizíamos isto na brincadeira. Eu tinha alguma esperança porque acredito no filme e acho que o filme tem muita qualidade e o percurso que tem vindo a fazer nos festivais tem provado que o filme tem tido muita aceitação por parte do público, mas ao mesmo tempo são os Óscares e sabemos que é uma meta um pouco inatingível, não é fácil de lá chegar. Confesso que tinha fé, mas não tinha grande esperança. Mas… estamos muito contentes com o resultado final.

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Como apresentaria o filme a quem ainda não o viu, sem fazer spoilers?
Sem estragar muito a quem não viu, posso dizer que o filme é sobre um pai e um filho, que estão a superar uma situação de perda, é um filme que lida um pouco com a solidão, é um filme que traz à baila um sentimento muito humano. Acho que é por isso que tem tido uma ressonância muito positiva nos espectadores que têm vindo a ver o filme nos mais variados festivais à volta do mundo. Nós temos tido sempre um feedback muito caloroso. Daí eu acreditar que é este lado muito humano que o filme traz que faz com que ele tenha o sucesso que está a ter.

Como é que o filme acontece, quando é que tudo começou e como é que tudo começou?
O filme começou de uma forma muito peculiar. O João estava na Royal College of Art em Inglaterra, a fazer o curso de animação, e o projeto que ele fez era o projeto de final de curso. O João tinha, salvo erro, cerca de 30 segundos já animados. Entretanto vem a pandemia e tornou-se um pouco complicado trabalhar e finalizar o projeto de curso dele. No entanto, cruzámo-nos no final de 2019, no festival de Espinho, o Cinanima. Temos uma amiga em comum que também é uma das cooperantes da COLA. Ela não estava presente, mandou uma mensagem a dizer “tens de conhecer este gajo”. Travámos conhecimento, foi a primeira vez que falámos, por acaso partilhámos boas notícias nesse festival e começámos a falar um com o outro com mais frequência. Ele apresentou o projeto, achámos extremamente interessante e concorremos ao ICA. O João conseguiu o financiamento para primeiras obras e depois foi uma aventura.

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Que tipo de aventura?
Isto foi tudo na altura da pandemia, do primeiro confinamento, então veio mesmo num momento em que precisávamos todos de algo para ocupar as nossas mentes, algo a que nos pudéssemos dedicar a tempo inteiro. Já que estávamos todos em casa, vestidos com pijama, à frente de computadores, ao menos trabalhávamos numa coisa que nos dava um calor no coração. Este projeto trouxe mesmo isso, foi um pouco um porto de abrigo durante esses tempos mais complicados. E depois pronto, foram anos de produção em que a equipa inicialmente era muito pequena. Era o João e a Ala Nunu, na equipa de animação, e eu a fazer produção, e à medida que fomos avançando foi entrando mais pessoal no projeto, até se tornar o filme que todos conhecem agora.

Qual a história da COLA?
Inicialmente constituímo-nos como um coletivo, sem posição legal. Éramos um grupo de pessoas que se juntou para fazer alguns projetos e algumas formações. O primeiro projeto que fizemos foi o “Cinegirasol”, o videoclip para os Azeitonas, fomos contactados na altura pelo Miguel Araújo, que era um dos guitarristas e vocalistas da banda, e ele aliciou-nos para fazermos um videoclip para eles, em stop motion, que eu realizei em conjunto com o Rui Telmo Romão. Muito por causa do sucesso desse videoclip, que foi escrito pelo Nuno Markl, a COLA começou a ganhar posição. Se não fosse o Nuno Markl, os Azeitonas e o Miguel Araújo, nós não existíamos. Depois, houve a necessidade de criar uma posição legal.

[o vídeo de “Cinegirasol”:]

Porquê? O que é que mudou?
Foi uma questão de necessidade, para podermos concorrer ao ICA. E quando isso aconteceu em 2018, fizemos a cooperativa. O João, por exemplo, entra só em 202, quando fizemos aquilo a que chamamos a “terceira vida da cooperativa”, quando nos tornámos internacionais. A cooperativa funciona como qualquer outra. Muitos de nós já tínhamos trabalhado para produtoras ou com produtoras. Quisemos fazer algo que fosse um pouco diferente, que não fosse uma mera empresa onde há um patrão e uma estrutura em pirâmide. Muita gente disse que as coisas nunca teriam a devida projeção, mas fomos casmurros e decidimos avançar. Verdade seja dita: a coisa tem corrido muito bem.

Como é que funciona este modelo de produtora?
Temos cooperantes e temos colaboradores. Uns formam o núcleo duro, somos nove. Fazemos uma reunião anual, pegamos em todas as propostas de projetos que tenhamos e decidimos quais os que achamos que merecem mais a nossa atenção. Todos temos responsabilidades. Eu trabalho maioritariamente como produtor, mas também realizo as minha coisas. O João é sobretudo realizador, mas se for necessário e ele tiver disponibilidade, também faz produção. A Ala Nunu é a nossa diretora de animação e também é diretora de arte, também realiza quando pode. Nós vamo-nos ajudando uns aos outros, para que toda a gente continue contente e não haja uma pessoa que esteja presa num limbo de fazer só um tipo de tarefa.

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Consegue traçar um perfil da animação em Portugal neste início de 2023?
A animação portuguesa está a atravessar uma fase incrível. Sempre tivemos realizadores reconhecidos internacionalmente, nomes sonantes. Não temos uma indústria, não há séries a ser produzidas em Portugal, só muito recentemente é que se começou a produzir longas-metragens, mas sempre vingámos nas curtas de animação. Temos nomes que são referência para qualquer aluno de animação, para qualquer amante de animação, são nomes que estas pessoas reconhecem. Muitas vezes, infelizmente, não temos esse reconhecimento cá dentro,

Porquê?
Também porque não temos muita animação autoral a passar na televisão. E é uma coisa que pode ser facilmente colmatada. Felizmente há sítios onde se pode ver. Por exemplo, o “Cinemax”, na RTP. Mas é daquelas coisas que não tem uma montra grande e dá a más horas. É normal que o grande público não conhecimento destas coisas. Nos últimos anos, isto tem mudado um pouco. O ano passado foi um ano de viragem muito importante. Porque além do “Ice Merchants” a fazer um percurso de festivais incrível, tivemos outros filmes com filmes internacionais, “O Homem do Lixo” da Laura Gonçalves, que estava também shortlisted para os Óscares, está a ter um percurso impressionante e é um filme lindíssimo. Há outros que estão em altas. E longas-metragens que vão sair agora em 2023: o “Nayola”, do José Miguel Ribeiro, “Os Demónios do Meu Avô”, do Nuno Beato, saiu agora em dezembro um filme que também trabalhámos, “O Natal do Bruno Aleixo”, do João Moreira e do Pedro Santo… A Animação está muito bem, mas podia estar melhor. Estamos em constante contacto com o ICA para ver se conseguimos ter uma percentagem um pouco melhor, que consiga acompanhar o crescimento e o sucesso da animação portuguesa. Mas acho que estamos muito bem. Temos gente muito talentosa nesta área.

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Esta nomeação pode potenciar tudo?
Temos um acervo de animação autoral considerável. Se esta curta-metragem já conseguir chamara a atenção do grande público para prestar atenção ao que está a ser feito e que já tem vindo a ser feito há muitos anos, se o público tiver interesse em conhecer aquilo que é feito, já é uma vitória, já será muito bom.

Já agora, vão estar no Dolby Theatre?
Não sabia, foi o João que me informou, as pessoas nomeadas pelo filme são o João e eu. Portanto tenho mesmo que estar presente. Acho que é uma daquelas experiências únicas na vida, não é uma coisa que acontece todos os dias, estar numa cerimónia que desde pequeno tento ver, acordado até às tantas. Este ano vou ter mesmo de ficar acordado.