O Conselho Superior da Magistratura (CSM) teve uma proposta em cima da mesa para arquivar o processo disciplinar aberto em fevereiro de 2022 contra o juiz de instrução Ivo Rosa — mas uma maioria simples dos nove membros da secção disciplinar do CSM decidiu rejeitar a proposta do inspetor responsável pela instrução do processo.
A proposta do inspetor Vítor Ribeiro foi analisada na reunião de 28 de fevereiro da secção disciplinar, a discussão foi acesa e a votação ainda mais renhida: 5-4 a favor da manutenção do processo disciplinar. O conselheiro Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça e líder por inerência do CSM, votou a favor da continuidade do processo disciplinar e foi decisivo para este resultado.
Processo disciplinar. O (longo) histórico de “desobediência” e “interferência ilegítima” de Ivo Rosa
Ao que o Observador apurou, verificou-se uma grande divisão entre os membros do CSM mas com uma mistura de posições entre os juízes eleitos e os representantes nomeados pelo poder político para o órgão de gestão e disciplinar dos magistrados judiciais. Por exemplo, o vice-presidente Sousa Lameira (conselheiro eleito pelos juízes), Inês Ferreira Leite (vogal eleita pelo Parlamento por indicação do PS) e dois juízes de direito votaram a favor do arquivamento, enquanto que o presidente Henrique Araújo, o juiz desembargador Jorge Raposo, José Manuel Mesquita (amigo pessoal de António Costa e ex-membro do Secretariado do PS) e mais dois representantes do poder político votaram contra o arquivamento.
E agora? Terá de ser feita nova proposta e Ivo Rosa poderá pedir audiência pública
Com a rejeição da proposta de arquivamento do inspetor que liderou a instrução do primeiro processo disciplinar aberto contra Ivo Rosa, os serviços do CSM fizeram uma nova distribuição entre os membros da secção disciplinar para apresentar uma nova proposta à secção disciplinar do Conselho Permanente.
Ao que o Observador apurou, o advogado António Barradas Leitão foi o escolhido. Trata-se de um dos membros eleitos pelo Parlamento, tendo sido indicado pelo PSD, que votou contra o arquivamento, tendo feito vários mandatos como vogal do Conselho Superior do Ministério Público. Barradas Leitão tem grande experiência nos temas disciplinares das magistraturas e, apesar de votado contra o arquivamento, tal não significa automaticamente que venha a propor uma pena disciplinar.
Conselho Superior Magistratura abre processo disciplinar a Ivo Rosa
No caso de a nova proposta indicar uma pena disciplinar (por exemplo, advertência ou suspensão de funções), Ivo Rosa terá direito a requerer uma audiência pública para se opor à pena proposta, como aconteceu em setembro de 2021 com o então juiz Fonseca e Castro — o magistrado negacionista que acabou expulso da magistratura. Aliás, é suposto a audiência pública começar com a leitura da pena proposta pelo relator da secção disciplinar.
Só após tal eventual audiência pública — que, como o próprio nome indica, poderá ser aberta à comunicação social — é que será tomada uma decisão final pelo plenário do CSM. Como a secção disciplinar só se reúne na última terça-feira de cada mês, não é certo que Barradas Leitão apresente a sua proposta ainda neste mês de abril.
As voltas do primeiro disciplinar a Ivo Rosa…
Recorde-se que, tal como o Observador noticiou em primeira mão, o processo disciplinar começou por ser aberto no final de fevereiro de 2022 devido a uma participação formal dos desembargadores Calheiros da Gama e Abrunhosa de Carvalho, do Tribunal da Relação da Lisboa.
Estava em causa uma decisão de Ivo Rosa de anular um despacho do juiz Carlos Alexandre num processo relacionado com Isabel dos Santos e Mário Leite da Silva, braço direito da empresária angolana.
Tendo Carlos Alexandre a mesma categoria de Ivo Rosa, juízes de direito, nunca uma decisão do primeiro poderia ser anulada pelo segundo, daí a suspeita de que Ivo Rosa exorbitou as suas funções por querer agir como um magistrado de um tribunal superior. Além do mais, Ivo Rosa terá alegadamente violado o “caso julgado formal”, segundo os desembargadores Calheiros da Gama e Abrunhosa de Carvalho
Ivo Rosa acusado no processo disciplinar do Conselho Superior da Magistratura
O juiz Ivo Rosa foi mesmo acusado formalmente em junho de 2022 de ter violado o Estatuto dos Magistrados Judiciais pelo inspetor judicial Vítor Ribeiro. Este desembargador propôs mesmo a aplicação de uma suspensão de funções de Rosa por um determinado período — o que equivale a uma sanção disciplinar grave.
Ivo Rosa teve 20 dias para responder à acusação disciplinar formal e, além de ter contratado o advogado Carlos Pinto de Abreu, apresentou requerimentos para a apresentação de prova documental e a audição de várias testemunhas. Só após a conclusão dessas diligências e a análise das mesmas é que o inspetor Vítor Ribeiro mudou de opinião e propôs o arquivamento do caso contra Rosa.
… e o segundo processo disciplinar em curso
O antigo juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, e que é agora candidato ao cargo de procurador europeu, tem ainda um segundo processo disciplinar em curso.
Na origem desse segundo processo estão igualmente novos acórdãos da Relação de Lisboa — e ambos relacionados com o mesmo caso: o arresto de uma conta bancária de Maria João Salgado, mulher de Ricardo Salgado, com um saldo de 700 mil euros.
Uma vez mais está em causa uma anulação alegadamente ilegítima de decisões anteriores do juiz Carlos Alexandre que terão violado as regras da hierarquia dos tribunais.
Processo disciplinar a Ivo Rosa reforçado com mais dois acórdãos da Relação de Lisboa
Os autos do caso Universo Espírito Santo foram distribuídos a 28 de outubro de 2021 e, no dia seguinte, Ivo Rosa estava a pedir ao seu funcionário judicial para lhe apresentar todos os arrestos e cauções do processo para analisá-los. Ou seja, sem que qualquer arguido tivesse suscitado alguma matéria.
No caso de Maria João Salgado, Ivo Rosa ouviu a mulher de Ricardo Salgado a 25 de janeiro deste ano e revogou a 11 de fevereiro a decisão do seu colega Carlos Alexandre.
O Ministério Público recorreu para a Relação de Lisboa e os desembargadores Vieira Lamún e Artur Vargues censuraram duramente a decisão de Ivo Rosa. “O sr. JIC recorrido [Ivo Rosa] (…) assumiu o papel de instância de recurso que não lhe cabe, pronunciando-se sobre o mérito da decisão impugnada proferida pelo colega que o antecedeu na titularidade do processo, quando as questões suscitadas pela parte vencida nessa decisão deviam ser apreciadas pelo tribunal superior”, lê-se no acórdão datado de 8 de março de 2022.
Recorde-se que o juiz Ivo Rosa foi graduado em abril de 2022 como juiz desembargador, tendo sido colocado provisoriamente no Tribunal da Relação de Lisboa. Contudo, a sua promoção está congelada até existir uma decisão final sobre os processos disciplinares em curso.