Ao segundo dia do julgamento da morte de Fábio Guerra, um dos agentes da PSP que estava também na discoteca MOME, em Lisboa, na madrugada de 19 de março do ano passado, negou a versão dada pelos arguidos no dia anterior e garantiu que, pelo menos, dois dos agentes daquele grupo se identificaram quando viram as agressões: “Corri para o local, levantei os braços e disse: polícia, parem, parem”. E Vadym Hrynko, um dos arguidos, voltou a falar e, em poucas palavras, admitiu que deu um murro e um pontapé na cabeça de Fábio Guerra.
À porta da sala do Tribunal Criminal de Lisboa esperavam ainda mais pessoas do que no dia anterior. Entre família e amigos de Fábio Guerra e dos dois arguidos acusados da morte do jovem de 26, Cláudio Coimbra e Vadym Hrynko, muitos não foram autorizados a entrar na sala, uma vez que já estava cheia.
E, perante os dois arguidos, que se sentaram lado a lado e foram os últimos a entrar na sala, o segundo dia de julgamento começou com o testemunho de Rafael Lopes, agente da PSP que estava com Fábio Guerra naquela noite. Quando saíram da discoteca, acompanhados por mais agentes que também não estavam de serviço, a confusão que envolvia Cláudio Coimbra, Vadym Hrynko e Clóvis Abreu — que não foi localizado pela PSP e também não terá, segundo o Ministério Público, agredido Fábio Guerra –, já tinha começado.
“Percebi que havia uma pessoa caída de forma violenta. Pensei que podia ter caído sozinho, mas percebi que não. O som dos pontapés dados na cabeça era bastante audível“, explicou Rafael Lopes, fazendo referência às agressões de Claúdio Coimbra e Clóvis Abreu a Cláudio Pereira — jovem que testemunhou ontem e com quem terá começado a confusão ainda dentro da discoteca.
Rafael Lopes contrariou então a versão dos arguidos, que esta terça-feira disseram em tribunal que não sabiam que estavam na presença de polícia. “Não ouvi ninguém dizer que era agente da PSP. Nem agentes da PSP. Lembro-me de uma rapariga a tentar separar”, disse Vadym no primeiro dia de julgamento. Aliás, o colega de Rafael Lopes, Leonel Moreira, terá feito precisamente o mesmo, dizendo que era agente da PSP. Durante a tarde, Leonel Moreira confirmou o que tinha sido dito durante a manhã, garantindo em tribunal que disse “bem alto e de forma audível” que era polícia. “Falei alto, agarrei-o (a Cláudio Coimbra) e afastei-o da vítima e disse: sou polícia”. E, nessa altura, Cláudio Coimbra “respondeu que não tinha nada a ver com isso”. “E dá-me um soco”, acrescentou.
“Pedi que comparecessem mais meios policiais. Estava a fazer a chamada e, pelo que percebi, as agressões continuavam. A meio da chamada vi o meu colega João Gonçalves deitado no chão e estava a levar bastantes pontapés na zona das costas. Terminei a chamada e fui logo em auxilio dele”, disse Rafael Lopes.
Além de João Gonçalves, também Leonel Moreira e Rafael Lopes terão sido agredidos. Primeiro terá sido Leonel Moreira, que “foi agredido com outro soco na cara e já tinha a cara bastante ensanguentada” e, depois Rafael Gomes, que seguiu os dois arguidos, quando estes se afastavam da discoteca, na direção do hospital CUF. “Quando estava quase próximo do sítio, chamaram-me: ‘Lopes, Lopes’. E os dois apercebem-se que estou atrás deles e o Vadym disse: ‘queres apanhar mais?’. E deu-me um soco.” Até aqui, esta testemunha garante que não sabia que Fábio Guerra tinha sido agredido.
Quando levei o soco, olho para o lado e estão duas carrinhas da polícia. Eles fogem em passo acelerado. Os meus colegas que estavam de serviço foram comigo à procura do suspeito e, quando estávamos à procura do suspeito, o meu colega João Gonçalves ligou-me: ‘anda para trás, deixa isso, quem está aqui no chão é o Fábio Guerra'”.
Arguidos admitem que deram pontapés a Fábio Guerra
O primeiro dia de julgamento ficou reservado para os dois arguidos e para duas das testemunhas — que falaram por videoconferência. Cada um dos arguidos contou a sua versão daquilo que aconteceu dentro da discoteca MOME e já fora daquele espaço e, ainda ao início da manhã, o arguido Cláudio Coimbra, reconheceu que deu pontapés a Fábio Guerra. Este arguido sublinhou que não sabia que Fábio Guerra era agente da PSP e que os pontapés que terá dado ao jovem foram atos irrefletidos e que surgiram depois de Fábio Guerra lhe ter dado um murro.
Testemunhas vão depor por videoconferência no julgamento do homicídio do agente Fábio Guerra
E, depois de Rafael Lopes ter dado o seu testemunho esta quarta-feira, relatando o que aconteceu à medida que ia vendo as imagens daquela noite, e que foram captadas pelas câmaras de vigilância, Vadym Hrynko foi chamado pela juíza, levantou-se e admitiu ter dado um murro e um pontapé na cabeça de Fábio Guerra, que morreu dias depois, já no hospital. Este arguido já tinha admitido no primeiro dia que tinha agredido Fábio Guerra com um pontapé, mas não tinha sido claro sobre a parte do corpo que atingiu.
Durante a tarde do primeiro dia, o Ministério Público mostrou as imagens daquela noite a Cláudio Pereira, que explicou o que aconteceu à porta da discoteca: “Estava parado, depois andei para a frente. Estava com o Pedro Costa. Depois foi quando agredi aquela pessoa. Agrediram-me. Estava no chão e já estava inconsciente”. Esta testemunha pediu ao tribunal para prestar declarações de forma anónima — sem imagem e com voz distorcida –, mas o pedido não foi aceite pelo tribunal.
As imagens que mostram as agressões e a insistência sobre quem se identificou como PSP, quem ouviu e quem não ouviu
Os agentes que estavam com Fábio Guerra naquela madrugada falaram todos esta quarta-feira e todos viram também as mesmas imagens, captadas pelas câmaras de vigilância da discoteca — que filmaram a partir do lado direito e do lado esquerdo da porta. E, através das imagens, João Gonçalves, Leonel Moreira, Filipe Lobo e Débora Pinheiro confirmaram que Cláudio e Vadym estavam ali, à frente da discoteca MOME. E que agrediram alguém que estava no chão, como mostram as imagens gravadas no dia 19 de março, às 6h19 — que era Cláudio Pereira.
Mas praticamente durante todo o dia, a grande questão que se discutiu, e sobre a qual houve insistência por parte dos advogados dos arguidos, foi perceber se algum dos agentes se tinha identificado como tal durante aqueles minutos de agressões. Leonel Moreira e Rafael Lopes garantiram que gritaram que eram agentes da PSP, Débora Pinheiro e Filipe Lobo confirmaram que ouviram os colegas, mas João Gonçalves disse não conseguir garantir. “No momento em que saio, lembro-me de dizerem alguma coisa”, acrescentou.
A defesa insistiu com Filipe Lobo e queria saber o que tinha ouvido, se a distância era suficiente para conseguir ouvir de forma clara e se “estava bêbado ou cansado” quando saiu da discoteca. Este agente disse que estava consciente e Miguel Santos Pereira, advogado de Cláudio Coimbra, voltou a insistir: “Não se recorda de ter sido agredido, mas lembra-se de ter ouvido ‘para polícia’?”. E Filipe Lobo manteve a resposta e acrescentou: “(Leonel) gritou de forma audível”.