Mais de quatro horas e com a frustração dos deputados. Apesar de Luís Laginha de Sousa, presidente da CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários), se ter escudado no sigilo de regulação e segredo de justiça para não falar do processo contraordenacional aberto à TAP, e que até levou a pedidos de suspensão da reunião, a audição ainda durou o tempo suficiente para se ficar a saber que a decisão do caso no supervisor não vai ter a assinatura do seu presidente. É que, revelou Laginha de Sousa, subscreveu obrigações da TAP e, por isso, se considera impedido de decidir sobre o tema.

Uma decisão que poderá levar a uma coima, cuja moldura legal pode atingir os 5 milhões de euros, mas como Laginha de Sousa reforçou e sublinhou até várias vezes a TAP é emitente de obrigações e, como tal, com um regime menos severo em relação à prestação de informações. Os relatórios de governo das sociedades da TAP, em determinados anos, também poderão estar com informação em falta, mas esse é um caso para a monitorização em sede de empresas públicas (da UTAM). Várias informações não prestadas e no caso da indemnização a Alexandra Reis um comunicado a retificar um outro anterior. E que deixou Bruno Dias, deputado comunista, a perguntar:  “Há limites para as mentiras que o emitente pode colocar desde que haja comunicado posterior à CMVM?”. Perante a resposta de Laginha, tirou as suas conclusões: “as mentiras podem ser do tamanho de um A330”.

1 Não foram três rondas, como habitual nas comissões parlamentares de inquérito (CPI), mas apenas duas. E poderia ter sido só uma, se tivesse sido cumprida a vontade de alguns deputados, perante as respostas “redondas”, nas palavras de Mariana Mortágua, de Luís Laginha de Sousa. “Não posso acrescentar mais do que referi”, “não vou entrar em especulações”, “não posso opinar” foram algumas das expressões proferidas pelo presidente da CMVM esta quinta-feira no parlamento.

O motivo para tanta cautela (que levou Laginha, a certa altura, a dizer ao seu advogado: “pode dar-me um pontapé se disser alguma coisa que não posso”) é o facto de o presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários está sob o dever de sigilo de supervisão e arrisca-se a violar o segredo de justiça se falar sobre o processo contraordenacional que o supervisor abriu contra a TAP. A exasperação dos deputados acabou por passar para o próprio presidente da comissão, Jorge Seguro Sanches, que se confessou “frustrado” com o rumo da audição. E revelou que a comissão vai pedir junto do Supremo Tribunal de Justiça o levantamento do segredo de justiça e do dever de sigilo, para que Laginha possa dar as respostas que os deputados pretendem.

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O processo contraordenacional foi aberto na passada quarta-feira, 5 de abril. Seguro Sanches lamentou que Laginha não tivesse avisado a comissão sobre as limitações que tinha na prestação de informações. “Esta comissão tem poderes parajudiciais. Não tem o direito, mas o dever de obter respostas. Se há obstáculos as instituições públicas” deviam “comunicar isso desta forma. Era isso que eu esperava”.

Frustração e surpresa na comissão da TAP. Deputados lamentam não respostas da CMVM e encurtam trabalhos

O presidente da CMVM pediu desculpa e disse que era a primeira presença numa CPI. “Não me passou pela cabeça, nem me foi sinalizada essa questão. Em relação ao passado não podemos corrigir, em relação ao futuro haverá toda a colaboração”, garantiu. E deverá voltar.

2 O processo de contraordenação da CMVM à TAP foi aberto a 5 de abril e conhecido publicamente através de Manuel Beja, o chairman demitido da TAP, esta terça-feira. Afinal, o que está em causa? Já a antecipar que a questão iria ser colocada pelos deputados, Luís Laginha de Sousa antecipou-se e explicou na sua intervenção inicial. Há, sim, um processo, para apuramento de eventuais responsabilidades relativas à qualidade e tempestividade da informação prestada pela TAP ao mercado, a propósito da renúncia de administradores.

Questionado sobre se o uso do plural era propositado, e se pode estar em causa algum administrador além de Alexandra Reis, Laginha referiu apenas que o processo é relativo a “renúncias de administradores, não posso entrar em mais detalhes”. A TAP foi notificada a está a decorrer o prazo para se pronunciar. Mais do que isto, Laginha não disse. Ou melhor, revelou que comprou obrigações (títulos de dívida) emitidas pela companhia em 2019 (só assumiu o cargo em novembro de 2022) . Por essa razão, não vai poder participar em decisões do conselho de administração sobre o processo de contraordenação, que pode resultar na aplicação de coimas à empresa.

A TAP está sujeita a este processo porque, apesar de não ser cotada e não ter ações, é emitente de obrigações. Logo, tem deveres de prestação de informação para com os investidores, ainda que inferiores às das empresas com ações cotadas. A TAP fez duas emissões de obrigações em 2019, uma destinada aos investidores de retalho em Portugal no valor de 200 milhões de euros e outra colocada no mercado irlandês. Os primeiros títulos são negociáveis e vencem este ano. Questionado sobre a expectativa de prazos para que haja uma decisão sobre se há ou não contraordenação, Laginha adiantou que “talvez em duas semanas saibamos se estamos em condições de saber o prazo ou não”.

Presidente da CMVM tem obrigações da TAP e não vai participar de decisão em processo de contraordenação

3 A CMVM pediu, em março deste ano, à TAP que retificasse o relatório e contas e relatório do Governo das Sociedades de 2020 para que nele constasse a informação de que o ex-CEO da TAP, Antonoaldo Neves, tinha saído com uma compensação. Antonoaldo Neves foi demitido por Pedro Nuno Santos quando o Estado tomou o controlo da TAP.

Luís Laginha de Sousa, presidente da CMVM, acabou por dar conta desse pedido de retificação, depois de Mariana Mortágua, do Bloco de Esquerda, recordar que não havia qualquer referência à indemnização de qualquer administrador e que entre prémios e compensações a ex-gestores, como Fernando Pinto e Maximilian Otto Urbahn, que não são divulgadas nos relatórios e contas da TAP, terá custado à TAP já 10 milhões de euros. A TAP terá dito que não tinha a obrigação legal de o fazer, o que levou, segundo disse Luís Laginha ao deputado da Iniciativa Liberal, Bernardo Blanco, a uma “fricção de pontos de vista entre a CMVM e a TAP”.  E, por isso, a CMVM terá comunicado à UTAM (Unidade Técnica de Acompanhamento e Monitorização do Setor Empresarial), que monitoriza as empresas públicas, essa divergência.

CMVM pediu à TAP para corrigir relatório de 2020 que omite indemnização a ex-CEO Antonoaldo Neves

Laginha de Sousa ainda garantiu que a TAP tem cumprido as obrigações de reporte financeiro enquanto emitente de dívida, não tendo havido queixas de obrigacionistas ou pedidos de informação em relação à TAP.

4 Os emitentes como a TAP, que só tem obrigações cotadas e não ações, e que por isso tem deveres de comunicação menos apertados, só têm de prestar informação ao mercado sobre a cessação de funções de administradores. Mas, disse Luís Laginha de Sousa, no caso dos pagamentos a ex-gestores só há obrigação de divulgar os valores se forem demasiado elevados, em montantes que possam influenciar o preço das obrigações emitidas. Os 500 mil euros de Alexandra Reis não deverá enquadrar-se neste caso. Já sobre a informação de que não tinha sido uma renúncia de iniciativa da gestora a TAP já emitiu um comunicado a emendar a informação, e tem em curso um processo contraordenacional da CMVM. Bruno Dias do PCP questionou um tratamento diferenciado dado à TAP em relação a empresas com ações cotadas — cujas obrigações de reporte e supervisão pela CMVM são mais apertadas — dando os exemplos das saídas antecipadas dos presidentes executivos da Galp — Carlos Gomes da Silva e Andy Brown — e do administrador Carlos Costa Pina, sem que a empresa tenha divulgado os motivos.

5 Manuel Beja, que deixou esta semana a função de chairman da TAP por ter sido demitido, já tinha referido que até os comunicados de imprensa da empresa iam a aprovação dos ministérios das Infraestruturas e das Finanças. Agora o PSD quis mostrar que também os comunicados à CMVM iam à tutela para aprovação. E fê-lo com um email de julho de 2021 quando da abertura de uma investigação aprofundada à ajuda pública que estava a ser negociada com a Comissão Europeia foi comunicada ao mercado, numa altura em que Alexandra Reis era a responsável das relações com o mercado da TAP. A 16 de julho de 2021, Stéphanie Sá Silva pediu instruções sobre um rascunho de um comunicado a enviar à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, que estaria em anexo desse mail, revelado pelo deputado do PSD, João Paulo Barbosa e Melo, mas que diz não ter acesso a esse anexo.

O email foi enviado pela então diretora jurídica da TAP, Stéphanie Sá Silva (casada com o ministro das Finanças, Fernando Medina), ao então secretário de Estado Adjunto e das Infraestruturas, com o conhecimento de vários membros do gabinete de Hugo Mendes e da CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener, e de outros administradores da TAP – Alexandra Reis, Ramiro Sequeira e João Gameiro, CEO que renunciou em setembro de 2021. Esta troca de email ainda aconteceu quando o Estado tinha a maioria do capital, e não a sua totalidade. “Anexo para consideração e comentários um rascunho da comunicação ao mercado e ao público em geral, para divulgação na CMVM e no site da TAP”, lê-se no mail, citado pelo PSD.

Laginha de Sousa recusou ir longe na pergunta sobre a intervenção do Governo, dizendo que não cabe à CMVM pronunciar-se sobre a forma como os emitentes organizam o seu processo interno.

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6 Foram mais as perguntas sobre o tema do que as respostas. Perante a possibilidade de já ter arrancado um processo de privatização da TAP – não oficialmente porque o Governo não publicou um decreto nesse sentido, mas até já foi contratada uma consultora para avaliar candidatos – os deputados quiseram saber se a companhia não estará a escapar a obrigações de reporte, uma vez que não prestou informações sobre o tema ao mercado. Laginha de Sousa voltou a apontar a “diferença substancial entre uma empresa que tem ações cotadas ou tem obrigações (como a TAP). E disse que “isso é especialmente relevante num caso destes”.

O que interessa aos obrigacionistas da TAP é assegurar capacidade de pagamento de juros. Logo, não há obrigatoriedade de dar informação sensível ao mercado, desde que não haja interferência no valor das obrigações. Quando e se esse momento existir, terá de ser comunicado, notou o presidente da CMVM, lembrando que a assembleia geral de obrigacionistas foi convocada quando houve mudança de acionistas na TAP. Laginha de Sousa deixou ainda a nota de que é preciso perceber o que cabe ao supervisor. “Não adianta querer atuar para além do quadro legal que temos”.