“Wayne Rooney disse que não só o Manchester City ia ganhar como ia golear? Oh, no ano passado disseram o mesmo e ganhámos a Champions…”. Com a mesma calma com que solta a bola a 40 metros pressionado por nenhum, por um ou por vários adversários, Toni Kroos relativizou a opinião do ex-avançado internacional inglês de uma forma tão natural que não demorou a tornar-se ainda mais num herói para os adeptos do Real Madrid, que já olham para o alemão como um dos rostos da era mais conseguida no plano europeu desde os longínquos tempos em que Di Stéfano, Puskas e companhia ganharam cinco Taça dos Campeões Europeus consecutivas. É quase como se existisse sempre aquela certeza de que, por pior que possa parecer o cenário, por mais complicado que seja a estrada, nunca existe um beco sem saída. Pode demorar mais, pode levar a mais umas quantas voltas, mas a porta do sucesso espera apenas por uma janela de oportunidade.

Ser o Real Madrid é estar na final da Liga dos Campeões — e nem as tentativas de reescrever a História fazem cair os mitos

Era nesse contexto que chegava este encontro, por mais que Rooney quisesse ser mais “irreverente” fora de campo como era enquanto jogador. Até podia ter razão pelo que as duas equipas estão a jogar nesta fase mas uma partida da Liga dos Campeões no Santiago Bernabéu é mais do que um mero jogo de futebol – ou não se dissesse há anos a fio pela história que os 90 minutos são bem mais longos quando os merengues jogam em casa. Se dúvidas existissem, bastava recuperar o que se tinha passado entre ambos nas meias: depois do 4-3 no Etihad, com Carlo Ancelotti a manter a mesma tranquilidade a mastigar a pastilha elástica quando estava a ser “amassado” ou quando a equipa reagiu, o Manchester City esteve em vantagem, falhou por mais de uma vez (e de forma escandalosa) o segundo golo e Rodrygo bisou em minutos consecutivos (90′ e 90+1′) para Benzema fechar a reviravolta no prolongamento. Parecia que havia um íman com a história ou não tivesse Asensio raspado de cabeça na bola quase que a preparar sem querer o 2-1 do brasileiro…

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O futebol é uma arte, entre o génio de De Bruyne e um genial Benzema (a crónica do Manchester City-Real Madrid)

Muito mudou nas duas equipas. Ao contrário do que se passou na última temporada, o Real Madrid não tem apresentado o mesmo nível e regularidade na Liga, tornou-se mais dependente de Karim Benzema na frente, em algumas fases ainda parece procurar um Casemiro que não existe e vai concedendo mais oportunidades aos adversários. Já o Manchester City incorporou um extraterrestre chamado Erling Haaland que poderia no início parecer um corpo estranho na forma de jogar da equipa mas que acabou por ser a referência para um estilo que às vezes não é tão vistoso mas que se tornou mais equilibrado (dentro da própria transformação de Pep Guardiola, que já chegou a alinhar de forma harmoniosa com quatro centrais em simultâneo…). Todavia, grande parte do filme desta primeira mão iria ser realizada à luz do que se passou há um ano.

“Temos que fazer um jogo completo, o jogo decisivo vai ser na segunda mão. Queremos obter uma pequena vantagem. É um jogo que exige muito de todos. Não se trata apenas de parar Haaland, temos que parar uma equipa que parece imparável. Eles têm uma equipa mais completa do que no ano passado”, dizia Ancelotti. “Não precisamos de motivação para chegar à final. Jogámos muito bem nos dois jogos de 2022 mas não estamos aqui para uma vingança. Se continuarmos a chegar aqui, algum dia iremos chegar à final. 80% ou 90% dos jogadores são os mesmos, temos de fazer as coisas da melhor forma possível. No ano passado viemos muito bem mentalmente e fomos eliminados. Não jogámos mal. Tínhamos de dominar mais o jogo”, destacava Guardiola. Muito do que seria também o encontro passaria pelo golpe de asa dos dois técnicos.

Em parte, ambos ganharam as suas apostas em parte cometendo erros que valeram quase pelo todo. E se a pele do Real Madrid nos jogos grandes ficou mais uma vez visível perante uma lição entre o que são os números das estatísticas e os números no resultado durante a primeira parte, o Manchester City teve o mérito de conseguir encontrar espaço para Kevin de Bruyne quando os espanhóis estavam na sua melhor fase em termos de controlo do jogo. Deu empate. Aqui todos acertaram: a decisão fica adiada para o Etihad.

O jogo começou com um Manchester City fiel ao que tem sido nas últimas semanas: dominador, subido, a jogar em largura, com constantes movimentos à procura do espaço, a circular sem perder a verticalidade na hora certa. Só no primeiro quarto de hora os ingleses obrigaram Courtois a quatro intervenções, as duas primeiras de grande qualidade a remates de meia distância de Kevin de Bruyne (8′) e Rodri (14′) e as duas seguintes com grau de dificuldade menor mas com Haaland a ameaçar com um tiro na passada e um desvio de cabeça após assistências de De Bruyne e Grealish (14′ e 15′). Questão: o Real Madrid consentia tudo isso ou não conseguia mais? A resposta não demorou muito e todos os números ficaram reduzidos a zero.

Com 25 minutos de jogo e Ederson como pouco mais do que um mero espectador apesar de ter uma saída atenta aos pés de Benzema, o Manchester City tinha o triplo dos passes do Real Madrid (216-72) e uma posse esmagadora (72%-28%) mas voltou a cair o erro de não perceber que é por ter duas caras que os espanhóis levam tantas coroas. Assim, e na primeira vez em que sentiu que havia algo para explorar na base do erro do adversário, Camavinga soltou-se pela esquerda num 2×1 com Modric que deixou Bernardo Silva para trás, assistiu Vinícius Júnior no corredor central e o brasileiro puxou a culatra atrás para o 1-0 (36′). É esta a essência do campeão europeu: Ancelotti adapta-se aos jogadores para se adaptarem à equipa, depois os jogadores adaptam-se à dimensão do clube e o clube só tem de se adaptar à sábia forma de ser de Ancelotti.

Pep Guardiola teria de mudar algo para fugir a mais um jogo onde há um número, o dos golos, que engana depois todas as estatísticas. No entanto, à exceção de um lance em que Bernardo Silva assistiu Kevin De Bruyne para nova intervenção monstruosa de Courtois antes de ser assinalado fora de jogo (52′), até houve menos City no último terço do que na primeira parte, com o Real a “cheirar” essa fase menos conseguida para se acercar mais da baliza de Ederson. Foi nesse momento que os espanhóis acabaram por provar do seu próprio veneno ao sofrerem quando pareciam ter a partida mais controlada: Rodri recuperou em terrenos mais adiantados, Grealish assistiu Kevin de Bruyne e o belga empatou à bomba (67′). Até ao final, Benzema ainda teve um cabeceamento para defesa de Ederson após livre, Tchouameni arriscou um remate de longe que motivou uma intervenção ainda mais complicada do brasileiro mas o empate iria subsistir.