Em 2021, “Titane”, de Julia Ducournau, levou a Palma de Ouro para casa no Festival de Cannes no meio de alguma controvérsia. Havia o carácter híbrido da obra, jogando com alguns dos domínios do cinema de género – sobretudo do terror – num filme que ia contra isso e que, em simultâneo, citava David Cronenberg com um à vontade muito século XXI. No início do filme, a relação da protagonista, Alexia (Agathe Rousselle), com os carros tinha algo de sexual, mas era um sexual utilitário para ela e fetichista para quem a observava. Imagens fortes, que ficam, quer se goste ou não do que Ducournau fez, e que vêm à memória em alguns momentos de “Rodeo”, a estreia da francesa Lola Quivoron.

O título refere-se aos rodeos urbanos. Se nunca ouviu falar disto, é possível que não esteja sozinho. Se sabe o que é um rodeo, está no caminho certo. Aqui não há animais, foram substituídos por motas que desfilam em exibição enquanto acontecem mil e um truques e atos de bravura. Um pouco como exibições de tuning, mas com um travozinho menos “alfa”. Eis o que importa saber: há cerca de uma década a realizadora andou metida neste mundo, decidiu explorar o universo das motas e acabou junto de uma das maiores comunidades europeias, a Dirty Riderz Crew. Não ficou por lá, mas ao longo de sete anos voltou às pessoas que conheceu com alguma regularidade, para perceber que tipo de comunidade se cria ali e como se geram grandes relações entre um cheiro terrível a gasolina, motores a vibrar e acrobacias que podem acabar muito mal.

Quivoron quer que o espectador saiba disto tudo, ou pelo espera que o sintamos, de alguma maneira. A primeira vez que vê um rodeo é marcante, primeiro porque é algo inesperado. O filme arranca com Julia (Julie Ledru), uma jovem adulta feroz e incontrolável, que vive de esquemas e de uma astúcia imbatível, a sacar uma boleia para ir ver uma mota. Sabe-se que é uma coisa que faz com regularidade, ir ver motas para comprar, para depois as roubar no momento do teste. Um truque ensaiado e repetido vezes e vezes sem conta, porque roubar faz parte do DNA de Julia: a dado momento no filme, ela diz que não sabe o que irá fazer com o dinheiro que acabou de ganhar, porque sabe conseguir tudo sem pagar. Rouba aquela mota e na cena seguinte está enfiada num rodeo, inexperiente, a ser castigada por quase todos as que a veem ali, porque ela não sabe o que está a fazer e pode colocar a vida de outros em risco.

[o trailer de “Rodeo”:]

O rodeo é marcante. A realizadora filma-o com a atração que existia nos primeiros “Velocidade Furiosa” (quando eram, sobretudo, sobre corridas de carro e exibicionismo) e os traços da relação homem/máquina que existiam em “Titane”. Em “Rodeo”, essa relação — ou a mota como extensão do homem — mostra-se em forma de desfile e em simultâneo apresenta um grupo de personagens que se conhecerão melhor na hora e meia seguinte. Envolve, pela natureza do exibicionismo, uma espécie de dança na qual se questiona primeiro todo o ato e depois fica-se maravilhado com ele. Tão poderoso quanto os instantes iniciais de “Kids” e, por isso, controverso.

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Ou, pelo menos, assim o foi em França. Quivoron foi criticada nos media e nas redes sociais pela forma como dá um certo glamour aos rodeos e os mostra como algo que provoca atração. Quem queira ver provocação, vê provocação, quem quer ver rock’n’roll, vê rock’n’roll, mas pode-se ficar pelo encantamento e liberdade das imagens, do nada a realizadora introduz o espectador a um novo mundo de um modo emocional e físico. Isso vale mais do que aquelas imagens caríssimas cheias de efeitos visuais de um qualquer reino do mundo literário que está agora a ser adaptado para televisão ou cinema.

O fio condutor, contudo, é a jornada de Julia. Ela que encontra naquelas aceleras um motivo para viver e que sobrevive na constante tentação de roubar mais motas, desafiar e desafiar-se num sistema que é sobretudo masculino. Enfia-se num mundo masculino, o grupo que conhece no primeiro rodeo a que vai é constituído quase só por homens e em quase todos os momentos em que ela está com eles, há desconfiança, uma má vontade ter aquela tipa ali no meio, aquela mulher que quer engendrar uma mudança na forma como aquele grupo funciona, quebrando algumas regras chave: apesar de tudo, não são bandidos, não querem roubar, gostam de motas, de as comprar barato, de as vender, de as exibir.

Uma estreia poderosa que valeu a Lola Quivoron o Prémio do Júri Coup de Couer no Festival de Cannes. Chega a Portugal quase um ano depois, numa estreia simultânea em cinema e em video on demand. Um “Kids” contemporâneo, numa escala menos abrangente, porque se concentra num grupo de pessoas com um gosto muito específico. Mas, ainda assim, um “Kids”, pela forma se apresenta uma personagem coletiva, desenha-se um retrato social, sem descurar a jornada pessoal de uma delas. Julia é mais predominante em “Rodeo” do que qualquer um dos “Kids”.