Duas audições na mesma semana. E nem por isso lhe faltaram palavras. Diogo Lacerda Machado saiu da TAP há dois anos, do cargo de administrador não-executivo, e protagonizou esta quinta-feira uma das audições mais longas da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP, a par das inquirições às duas protagonistas, Alexandra Reis e Christine Ourmières-Widener. Foram quase seis horas de um “contador de histórias nato” com “excelente memória”, segundo o deputado do PSD Paulo Moniz, que somaram às quase três da passada terça-feira, em que esteve na comissão de economia para falar… sobre a TAP.
O gestor que ficou conhecido por ser o melhor amigo de António Costa, e que na sala tinha outro dos melhores amigos de ambos, o deputado socialista Francisco Oliveira, tinha, de facto, muitas histórias para contar. E não só da TAP. Falou da Motorola, da EDP, do papel comercial do BES e até dos helicópteros Kamov e do Siresp. Mas falou, sobretudo, do tempo em que negociou a reconfiguração da privatização da TAP, em 2015, de quando sofreu uma pressão do Governo e do negócio que, defende, viabilizou a existência da TAP: o Brasil.
1Diogo Lacerda Machado ficou conhecido como o “melhor amigo” de António Costa. E não parece importar-se com isso. E até contribui para perpetuar essa ideia. No entanto, amigos amigos, TAP à parte. Lacerda Machado revelou que não fala com Costa sobre a companhia desde 9 de abril de 2020 às 22h00. A relação profissional começou com uma consultoria entre 2015 e 2017, que só passou a ser paga em 2016 por “generosidade”. Lacerda Machado sentia-se em dívida com Costa por ter rejeitado um convite para integrar o Governo. Em 2017, Lacerda Machado torna-se administrador. Um convite que aceitou com “orgulho”, apesar de Passos Coelho ter dito na altura que era uma “vergonha”.
Nunca foi alvo de pressões de Costa, garante. A relação é de “respeito e consideração” e “não de subordinação”. “Acho que vai ser assim até sempre, especialmente quando deixar de ser primeiro-ministro e pudermos beneficiar da companhia que prezamos muito”. Ainda diria, sobre o amigo, que “o António é um extraordinário advogado. Sempre lhe disse que se fosse advogado ficaria rico, mas ele escolheu ficar pobre….”, mas rico de espírito.
2A pressão política existiu enquanto esteve na TAP, admitiu Lacerda Machado. Não por António Costa mas através de um secretário de Estado do seu Governo. O ex-administrador teve dificuldade em lembrar-se do nome (“foi presidente da câmara de Aveiro”), mas com a ajuda dos deputados acabou por lá chegar: Alberto Souto de Miranda, à época secretário de Estado Adjunto de Pedro Nuno Santos, antes de sair em setembro de 2020, para dar entrada a Hugo Mendes.
Essa pressão teve que ver com o orçamento da companhia, revelou, dizendo que lhe foi pedido para votar contra o plano. “Expliquei que não faria o que foi sugerido, foi o momento mais agudo. Disse que o orçamento de uma empresa como a TAP não é para fazer política”. E esse orçamento, o de 2020, “era tão bom que com a Covid, em janeiro de 2020, saiu uma execução 3% acima do orçamento, e em fevereiro foi 0,5% acima do orçamento”. Os motivos da pressão, não sabe. Ou se sabe, não disse. “Não faço ideia porquê. Expliquei que não faria isso, se o Governo quisesse apresentaria a minha renúncia. Não se repetiu”. Souto de Miranda saiu em setembro de 2020 do Governo.
Pedro Nuno continuou mas Lacerda Machado não quis avaliar a prestação do ministro. Até porque o seu período de intervenção coincidiu com a “total anormalidade” da pandemia. Mas não se esquece das críticas que Pedro Nuno fez aos polémicos prémios pagos a 180 trabalhadores em ano de prejuízos. “Não havia prémios nenhuns, eram remunerações variáveis, contratadas. Era o que faltava que o conselho de administração não se batesse pelo cumprimento dos contratos de pessoas que cumpriram os resultados”.
3 Lacerda Machado “não sabe, nem teve envolvimento” na decisão do Governo de pagar 55 milhões de euros a David Neeleman em 2020 para este sair da TAP. “ Mas não a compreende. E invoca o artigo do Código Civil que prevê alteração extraordinária de condições, uma cláusula que, no seu entender, dava direito à resolução de todos os contratos, por causa da pandemia. “Na minha opinião, todos os contratos e acordos feitos até então (entre o Estado e David Neeleman) perderam sentido, oportunidade e até validade intrínseca”.
Logo, o acordo parassocial que previa o reembolso do dinheiro colocado por Neeleman na TAP em caso do bloqueio entre os acionistas, não tinha validade, isto na opinião de Lacerda Machado que contrariou a explicação dada por Pedro Nuno Santos de que, com os contratos em vigor (e que já agora foram negociados em 2017 por Lacerda Machado), o Estado corria o risco de ter de devolver a Neeleman toda a capitalização colocada na TAP, 226 milhões de euros. O advogado indicou ainda aos deputados que não fala com o amigo António Costa sobre a TAP desde abril de 2020, o que significa que não discutiu com ele a aquisição da participação de Neeleman, meses mais tarde.
4 A negociação com a Lufthansa em 2020 estavam encaminhadas para se conseguir o melhor dos dois mundos para a TAP. Lacerda Machado indica que a companhia alemã estava disposta a ficar com uma posição minoritária (que correspondia às ações do empresário americano) — Estado e Humberto Pedrosa ficavam no capital — e a manter a direção da TAP em Portugal. Aceitavam ainda todos os compromissos estratégicos já assumidos pelos privados e estavam “entusiasmados” com o desenvolvimento do hub de Lisboa.
Agora, admite Lacerda Machado, o cenário é outro, não só por causa da maior consolidação e integração de companhias aéreas. Dificilmente os interessados na TAP aceitarão ficar numa posição inferior ao Estado depois de todo o ruído à volta da “ingerência política” na gestão da companhia. Defende que o Estado deve “conservar pelo menos uma pequena participação”. Mas, acredita, “ninguém vai aceitar menos que o controlo depois do que aconteceu”.
Não obstante considerar que estar a repetir publicamente que a TAP não vai devolver a ajuda pública que recebeu, é mau para os interesses do país, Lacerda Machado não acredita que alguém pague 3,2 mil milhões de euros pela TAP. Mas deixa no ar a hipótese de um futuro comprador partilhar com o Estado eventuais ganhos futuros com a TAP.
5 As negociações com a Lufthansa avançaram em 2019 quando David Neeleman percebeu que o Governo não o ia deixar fazer o IPO (oferta em bolsa) que planeava (e que estava previsto na privatização de 2015). Lacerda Machado contou que o empresário queria abrir o capital da TAP SGPS, mas que isso iria obrigar o Estado também a ceder posição. A opção imposta foi a de que essa operação a avançar, seria feita por baixo, pela TAP SA (que até era a empresa com potencial para lucros). Assim, o Estado mantinha os 51% da holding. Mas isso deixava a Atlantic Gateway de Neeleman “pendurada” em cima e sem hipótese de obter dinheiro com a dispersão em bolsa. Lacerda Machado contou aos deputados que a divergência gerou “uma zanga” muito grande com Antonoaldo Neves no conselho de administração, zanga essa que deixou claro quem tinha o controlo estratégico da TAP — o Estado. Para o advogado que trabalhou pro bono para o amigo Costa na negociação que conduziu à recompra de uma parte do capital da TAP, esta operação permitiu ao Estado ficar com 51% de uma empresa onde não tinha metido dinheiro.
6Não o entronizou, mas quase. Para Diogo Lacerda Machado, o ex-presidente da TAP, Fernando Pinto, foi o verdadeiro santo dos milagres na TAP. Geriu uma empresa sem capital durante 15 anos, “descobriu” o caminho para o Brasil e na reconfiguração da privatização, quando se decidiu que a gestão deveria ser profissional, a escolha foi manter Fernando Pinto. Por isso é que Lacerda Machado não prescindiu dos seus serviços como conselheiro quando o gestor brasileiro saiu da TAP. Foi feito um contrato de prestação de serviços de 1,6 milhões de euros, válido por dois anos, que foi revelado nesta CPI. Para Lacerda Machado, até foi pouco.
“Fernando Pinto era depositário da história da TAP dos últimos 18 anos, todo o reconhecimento devido era pouco porque ele geriu a TAP durante 15 anos sem um cêntimo de capital. Lacerda Machado diz que “jamais prescindiria dos conselhos de Fernando Pinto” e “queria continuar a abusar da paciência” do ex-presidente da TAP. Os 1,6 milhões correspondiam aos encargos que a empresa tinha com Fernando Pinto como presidente da comissão executiva até ao termo do mandato. “O que foi dado a Fernando Pinto é muito pouco por aquilo que ele significou para a TAP”. E “merecia outro reconhecimento” porque foi “fulcral em partes muito boas da história da TAP”.
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Que Diogo Lacerda Machado é o maior defensor do negócio da manutenção no Brasil, já tinha ficado claro quando o ex-administrador veio ao parlamento na passada terça-feira, e afirmou que esse foi o melhor negócio da TAP em 50 anos. Voltou a dizê-lo esta quinta-feira.
Manutenção no Brasil “foi o melhor investimento que a TAP fez em 50 anos”, diz Lacerda Machado
“Foi o Brasil que viabilizou a existência da TAP nos anos em que o Estado não podia por dinheiro e os bancos não podiam emprestar mais”. Então e os supostos mil milhões de euros em que a manutenção no Brasil penalizou a TAP? Terão sido, afinal, 600 milhões, segundo os cálculos de Lacerda Machado. E não foram um custo, mas um investimento. “A soma do total do investimento, porque não lhe chamo custo, pelas minhas contas, foi de 600 milhões, isso alavancou uma receita que anda entre os 10 e 12 mil milhões de euros”. Além disso os mil milhões decorrem de provisões (algumas revertidas) com contingências que “nunca se verificaram”. “Boa parte do que tinha expressão contabilística não teve expressão substantiva. Foi um exercício de prudência ir constituindo provisões. A expectativa era de que em 7 ou 8 anos recuperava investimento e a viabilizava e o ativo passava a ter valor”.
As perguntas sobre este negócio – que parece ser dos poucos a defender – sucediam-se na inquirição. A avaliação à operação da VEM (due dilligence) afinal só foi feita depois do acordo de compra, que foi feito através de uma empresa instrumental – Reaching Force, da qual a TAP tinha 15%, mas a Geocapital – do qual Lacerda Machado era advogado e mais tarde administrador, ligada a Stanley Ho – tinha 85%. Lacerda Machado explica que a compra da VEM e Varilog foi de 62 milhões de euros, tendo a Reaching Force recebido um financiamento de 41 milhões do BNDES (banco do fomento brasileiro) e 21 milhões da Geocapital. Lacerda Machado garante que a Geocapital não recebeu um cêntimo pelo reembolso e juros do empréstimo. E a ideia de entrar neste negócio foi de Fernando Pinto.
“O Estado português acompanhou o negócio, sendo informado e dando condescendência por essa via”, mas Carlos Costa Pina, secretário de Estado do Tesouro à época exigiu saber depois porque não tinha o Ministério das Finanças sido informado. Se fosse “necessária a posição do Ministério das Finanças não era nada que tivesse que ver comigo e com a Geocapital”, pelo que “dei por adquirido que a TAP tinha feito” se a isso fosse obrigada. A Geocapital acabou por sair do negócio porque, segundo Lacerda Machado, só entrou nele com o objetivo de ajudar a salvar a Varig. Com a falência da companhia brasileira, deixou de fazer sentido permanecer no negócio. E assume que a TAP pagou tudo. E enquanto esteve envolvido no negócio garante que ao vender a Varilog a um fundo norte-americano a TAP foi a única beneficiária, ao obter uma mais-valia de 7 milhões.
O encerramento da manutenção no Brasil foi “culpa” da Covid e do plano de reestruturação, tendo Lacerda Machado desabafado: “ainda bem que foi a Comissão Europeia que mandou fechar”.