O sociólogo Boaventura de Sousa Santos enviou na semana passada uma carta ao Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra a manifestar a sua “profunda e genuína preocupação” com o facto de ainda não ter sido criada uma comissão independente para averiguar as suspeitas de assédio levantadas no mês passado contra ele e um outro académico daquela instituição.
Numa carta dirigida aos órgãos sociais e associados do CES, a que o Observador teve acesso, Boaventura de Sousa Santos diz estar preocupado com o facto de a comissão independente, prometida pelo CES quando as denúncias vieram a público, ainda não ter sido criada. “O CES não pode ficar de braços cruzados sem reagir às denúncias efectuadas. Também me preocupa as consequências que podem advir desta passividade por parte do CES”, escreveu o sociólogo na carta.
O académico diz também que tem “intenção de prestar todas as informações sobre todas as denúncias que tenham surgido ou que possam vir a surgir”.
Boaventura de Sousa Santos. Comissão para investigar suspeitas de assédio ainda não foi criada
“Tenho intenção de responder a todas as perguntas e mostrar todos os documentos pessoais que sejam relevantes. E, face à gravidade destas imputações, é minha opinião, ressalvado o (muito) respeito que TODOS me merecem, que o CES tem de agir rapidamente. O CES sempre foi uma instituição que lutou contra as práticas que me e lhe são imputadas. Não pode o trabalho de décadas ser destruído por causa de umas pichagens sem qualquer fundamento”, atira o sociólogo.
“Quero prestar os meus esclarecimentos perante todos vós. Quero ser escrutinado por vós, porque estou de consciência limpa e sei que sou inocente. Quero que exista um processo, interno ou externo para que eu me possa defender. Quero que todos vós, a justiça e a comunicação social conheçam a verdade”, diz Boaventura de Sousa Santos.
O sociólogo admite que será o primeiro a fazer “uma autocrítica” caso sejam identificados comportamentos inadequados: “E se se concluir que ao longo da minha vida tive, em determinadas ocasiões, comportamentos inadequados (cresci numa época e numa sociedade de vincado pendor patriarcal contra a qual sempre lutei) então serei o primeiro a fazer uma autocrítica, como já o fiz no passado, a aceitar as demais e a procurar definir ferramentas para erradicar esses comportamentos na sociedade. Mas não me qualifiquem de abusador, assediador ou extrativista!”
Esta quinta-feira, o jornal Público noticiou que a comissão independente destinada a averiguar as suspeitas que vieram a público no início de abril ainda não foi criada. O diretor da instituição, António Sousa Ribeiro, esclareceu que o processo se revelou “bastante mais moroso” do que o previsto. A comissão independente foi prometida logo que as suspeitas se tornaram públicas, na sequência de um capítulo de um livro académico assinado por três investigadoras que tinham passado pelo CES — e a elas juntar-se-iam depois outras mulheres com acusações semelhantes. O sociólogo tem sistematicamente negado as acusações e garantido estar disponível para responder perante uma comissão independente e para mostrar os documentos necessários.
Na mais recente carta, com data de 10 de maio (um dia antes de se completar um mês desde a divulgação das suspeitas), Boaventura de Sousa Santos avisa até o CES que os “ataques têm vindo a ser aproveitados pelos grupos da direita portuguesa” — e diz-se preocupado com as “consequências se não houver uma investigação rigorosa e uma resposta forte: às denúncias que possam revelar-se verdadeiras e às denúncias que são manifestamente falsas”.
No texto de sete páginas, Boaventura de Sousa Santos volta a rejeitar todas as acusações, repetindo que, no que toca às três autoras da primeira denúncia, apenas teve reuniões presenciais com uma delas — e acusa-a de “revanchismo”, depois de ter sido afastada do CES devido a um comportamento “de tal ordem insolente e incorreto”.
No que respeita à acusação movida pela ativista Moira Millán, Boaventura de Sousa Santos também rejeita as alegações de assédio e volta a repetir um conjunto de argumentos que já tinha apresentado antes, incluindo com a citação de vários e-mails trocados com a ativista que, alegadamente, desmontam a versão apresentada por Millán.
Boaventura de Sousa Santos mostra emails e exige “pedido público de desculpas” a Moira Millán
“Infelizmente, creio que Moira Millán se quis aproveitar do meu nome e do nome do CES para ganhar visibilidade. Não posso (e espero que ninguém possa tolerar) esse tipo de comportamento. Há, infelizmente, demasiadas vítimas de comportamentos machistas em todo o mundo. Mas há também denúncias e acusações falsas que mancham o nome do visado mas e que, se florescerem, podem desvalorizar as denúncias verdadeiras”, diz.
Na carta, o sociólogo lembra que foi ele que decidiu auto-suspender-se “para facilitar as averiguações que houvesse por bem levar a cabo”.
“Todavia, até à data, nenhum avanço nesse sentido foi feito. A única consequência da minha auto-suspensão foi terem-me retirado os meus orientandos, o que não aceito”, escreve ainda Boaventura de Sousa Santos. “Por outro lado, o comunicado enviado pelo CES para a comunicação social declarava que era o CES que me suspendia. Foi essa notícia que correu pelo mundo. Causou-me um dano irremediável”, diz também, sublinhando que a Universidade de Cambridge suspendeu a publicação de um livro que estava prestes a ser publicado e pelo qual poderá exigir a Boaventura uma indemnização.
“Como é comum em casos de linchamento mediático — pois disso se trata — surgem sempre novas acusações, e o direito de defesa é negado. Estou com a consciência tranquila. A seu tempo e no lugar próprio as refutarei uma por uma, mas dói que o CES pareça não ter qualquer interesse em ouvir a minha voz”, diz. “Estou certo de que estais conscientes do contexto político em que estamos. Há partidos de direita que se manifestam contra o financiamento de centros de investigação como o nosso. Pedem sangue e bodes expiatórios. Espero que não lhos ofereçamos. Solicito, assim, com a máxima urgência, seja criada a comissão independente e pretendo ser chamado para esclarecer as denúncias que possam existir contra mim.”