Um dia de pausa que não foi completamente um dia de pausa. Depois das emoções da subida a Bérgamo, a Volta a Itália teve a segunda e última folga mas notícias não faltaram, a começar por um anúncio que mesmo previsível não deixou de causar alguma nostalgia nos pelotão e nos adeptos: Mark Cavendish, acompanhado da família e de elementos da Astana, anunciou que vai terminar a carreira e que está a fazer os últimos meses como corredor. “O ciclismo foi a minha vida durante 25 anos, permitiu-me correr um pouco por todo o mundo, conhecer muitas pessoas e companheiros maravilhosos. O meu primeiro triunfo numa grande volta foi no Giro e foi por isso que quis anunciar aqui, porque o Giro está no meu coração”, explicou o corredor inglês, numa mensagem seguida por agradecimentos que foram chegando dos mais variantes quadrantes.

João Almeida atacou, mas ainda tem que lidar com três mosqueteiros. Giro agradece a Ben Healy pelo espetáculo

Mas nem só de coisas “bonitas” foi feito o dia e houve uma troca dura de palavras ainda a propósito da 13.ª etapa, quando Thibaut Pinot e Jefferson Cepeda andaram “pegados” por uma vitória da fuga que acabou por sorrir ao terceiro elemento, Einer Rubio. “Orgulhoso de ver Ben Healy a felicitar o vencedor e não a ir chorar para a comunicação social sobre como a vida às vezes é injusta. Não sei se o Pinot vai conseguir ler isto com todas as suas lágrimas”, atirou Jonathan Vaughters, diretor da EF Education. “Mas quem és tu?”, questionou o corredor francês visado. “Quem é ele? É um palhaço de m***. Pelo menos baseado nos 30 anos em que o conheci”, atirou na sequência da conversa o também ex-corredor norte-americano Lance Armstrong.

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Confusões e velhas zangas que “animaram” um dia de descanso onde as principais equipas foram planeando a tática para a terceira e decisiva semana que tinha praticamente só montanha a começar por uma etapa com chegada em alto em Monte Bondone. E as casas de apostas serviam de barómetro para os três potenciais favoritos à vitória final: Geraint Thomas, Primoz Roglic e… João Almeida. “Almeida, Roglic e Thomas dão a impressão de serem os mais fortes, pelo menos por enquanto. Lamento muito que o Tao Geoghegan Hart tenha desistido, porque ele parecia ser o mais forte da corrida até à sua queda. Mas se me perguntar quem é agora o favorito a vencer, para mim é o Almeida”, disse mesmo Lennard Kämna, agora líder da Bora.

“Terminámos a segunda semana com uma vitória em etapa do Brandon [McNulty], que foi muito positiva, e agora venha a terceira semana que é muito dura. Esperamos estar à altura dos adversários. Estou numa posição ainda melhor do que aquela que estava à espera, a 20 segundos dos rivais. É um saldo muito positivo e espero que a terceira semana seja boa. Poderá haver algumas diferenças entre os candidatos na véspera dessa etapa mas o contrarrelógio [de sábado] vai ser muito decisivo, por isso há que guardar algumas forças para esse dia. Poucos ataques até aqui? Acho que é mais pelo tempo que tem estado horrível. Têm sido etapas muito longas e diferentes. O pelotão está muito doente e isso limita muito as equipas”, tinha referido o corredor português aos meios oficiais da UAE Team Emirates durante a pausa de segunda-feira.

“Esta também pode ser a minha melhor hipótese para ganhar o Giro”, diz João Almeida (após etapa onde desenvolveu ataque de 910 watts)

“Sinto-me bem, vou chegar muito bem. Tive uma queda, estive doente mas acredito que vou chegar agora no melhor momento. Estamos preparados para dar tudo. Ter um grupo tão forte facilita muito as coisas. Agora estamos todos mais ou menos iguais na geral e fiz o ataque em Bérgamo para perceber como estavam os outros até porque a etapa estava aborrecida. Estou surpreendido pela falta de ataques do Primoz [Roglic], talvez esteja ainda afetado pela queda que sofreu e não se encontre tão bem. Sabemos que ele vai mexer-se e não ficaremos de braços cruzados. Se espero agora muitos ataques? Acho que sim, que vão chegar, embora seja um risco jogar tudo aí havendo o contrarrelógio de sábado. Quem está mais forte neste Giro? Talvez seja o Primoz o mais forte de todos mas o [Geraint] Thomas está muito bem”, disse o caldense numa entrevista ao jornal Marca onde lançou a última semana e um ano de 2024 a olhar para a estreia no Tour.

Em cinco dias, tudo iria decidir-se. Entre as subidas de Monte Boldone (terça-feira), Zoldo Alto (quinta-feira) e Tre Cime di Lavaredo (sexta-feira), entre o contrarrelógio também a subir entre Tarvisio e o Monte Lussari (18,6km). E todos os pormenores iriam contar desde o início da tirada com mais de 200 quilómetros.

Logo no início do dia ficou a saber-se que mais três corredores iriam falhar o início da terceira semana, entre Simon Clarke (Israel), Davide Ballerini (Soudal Quick-step) e Amanuel Ghebreigzabhier (Trek), aumentando para 47 o número de abandonos na edição com mais desistências das últimas três décadas. Ainda assim, havia uma boa notícia em comparação com os primeiros 15 dias: a chuva deu uma ampla trégua ao pelotão, que rodava até com algum sol (e até mesmo algum calor, pasme-se) depois de dias a fio de chuva e frio. A seguir, as primeiras mexidas. Kristian Sbaragli, Christian Scaroni e Davide Babburo conseguiram sair na fuga ao contrário das tentativas falhadas de Bauke Mollema e Kristian Sbaragli, houve também uma queda que não provocou qualquer desistência mas que envolveu um dos top 10 da equipa da Ineos, Laurens De Plus.

Essa fuga acabou por ser anulada mas o pelotão recusava-se a andar no mesmo ritmo, o que provocou cortes que foram depois recuperados e mais grupos que descolaram da zona dos favoritos: Aurélien Paret-Peintre, Valentin Paret-Peintre, Christian Scaroni, Jack Haig, Jonathan Milan, Jonathan Lastra, Ben Healy, Martin Marcellusi, Alessandro Tonelli, Salvatore Puccio, Ben Swift, Derek Gee, Carlos Verona, Filippo Zana, Michael Hepburn, Toms Skujins e Diego Ulissi juntaram-se para fazer a fuga, Vadim Pronskiy, Cesare Benedetti, Patrick Ronrad, Thomas Champion, David Bais, Davide Babburo, Filippo Magli, Nicolas Dalla Valle e Veljko Stonjnic tentaram descolar para se juntarem também aos fugitivos. A vantagem passava os três minutos e meio, o que colocava Paret-Peintre virtualmente em segundo, mas não parecia haver grande preocupação na primeira subida do dia. Mais atrás, João Almeida teve um furo e teve de trocar uma das rodas.

O ritmo seguia frenético com uma média de 49,4km/h nos primeiros 63 quilómetros, com Bruno Armirail a apanhar ainda um susto quando o principal grupo partiu e ficou atrás. A colagem seria feita pouco depois e as atenções viravam-se para a fuga, que teve Ben Healy a ganhar o máximo de pontos (40) na passagem por Passo di Santa Barbara e a assumir a liderança da camisola da montanha com mais quatro do que Davide Bais. Mais atrás, era a Jumbo que marcava o ritmo forte no pelotão, quase que a sentir o pulso das principais equipas num dia propício na teoria a ataques. Em Passo Bordala, numa contagem de terceira categoria, Healy foi segundo atrás de Davide Gabburo mas reforçou essa liderança tal como iria acontecer com Jonathan Milan, que bateu Derek Gee e aumentou também a vantagem na camisola por pontos do Giro.

A etapa viveria depois momentos diferentes, com a Groupama a querer também assumir protagonismo no pelotão e a passar para a frente da Jumbo numa fase em que voltava um pouco mais de chuva no percurso. Lá mais à frente, Vadim Pronskiy e Christian Scaroni colocaram a Astana da frente, sendo perseguidos por um grupo onde estavam os irmãos Aurélien e Valentin Paret-Peintre, Jack Haig, Carlos Verona, Patrick Konrad, Derek Gee, Jonathan Lastra, Toms Skujins, Diego Ulissi e Filippo Zana ao mesmo tempo que alguns dos protagonistas da fuga começavam a deixar-se cair com o sentimento de missão cumprida. A 50 quilómetros da meta, o grupo da frente já se tinha tornado único, com uma vantagem de 4.20 sobre um pelotão que deixou de contar com Pavel Sivakov da Ineos. Em paralelo, havia imagens que mostravam Primoz Roglic descontente com algo que se estava a passar no pelotão, abanando várias vezes a cabeça.

Verona ganharia na passagem por Serrada, mostrando que podia ser uma opção de vitória na etapa caso a fuga voltasse a imperar neste arranque da terceira semana de Giro, e tentou de novo esticar o grupo fugitivo com Zana, sendo apanhado por Aurélien Paret-Peintre, Jack Haig, Patrick Konrad, Jonathan Lastra e Toms Skujins quando a distância em relação ao pelotão baixara para 2.50 a 18 quilómetros do final e 2.30 apenas 1.000 metros depois. Era altura das decisões, com todos os pormenores a contarem como por exemplo a saída de Koen Bouwman do grupo e as aparentes dificuldades de Bruno Armirail para manter o ritmo do pelotão cada vez mais reduzido que já ia a dois minutos dos fugitivos a 15 quilómetros do final. Só mesmo nessa fase apareceu a UAE Team Emirates, que passou para a frente com quatro unidades à cabeça.

Em condições meramente teóricas, só mesmo com João Almeida a sentir-se bem é que haveria essa postura que colocava Formolo na frente e a dupla Jay Vine-Brandon McNulty na proteção ao português (e ainda havia Diego Ulissi). Esse esticão não só deixou Armirail na cauda do grupo como encurtou mais distâncias para a frente, que a menos de dez quilómetros já estava abaixo do minuto e pouco depois viria mesmo a colar enquanto a UAE Team Emirates fazia o seu trabalho deixando Vine com o português e Ulissi a ficar para ser o terceiro elemento da equipa. A oito quilómetros houve o corte que todos esperavam, com João Almeida a ficar sozinho por si contra Thomas e Roglic mas sem Damiano Caruso. Eddie Dunbar também tentava ir mexendo na frente com Zana, que ficara após o fim da fuga. Era ali que estavam todas as decisões.

Sempre que João Almeida comandava e marcava o ritmo, caía mais alguém. Esticava, respirava, esticava, respirava. Tudo até ao ataque final do português, que conseguiu cavar uma distância que teria de fazer cair alguém, neste caso Roglic. Só mesmo Geraint Thomas aguentou a estratégia do corredor da UAE Team Emirates, com alternâncias na frente com o chefe de fila da Ineos para conseguirem o grande objetivo do dia: aumentar a vantagem em relação ao líder da Jumbo, naquela que poderia ser a maior surpresa de uma tirada em que muitos apostavam no esloveno para a vitória. Faltava apenas a confirmação daquilo que parecia ser inevitável e que se confirmou mesmo, com triunfo para o português com Geraint Thomas na roda e a confirmação da subida ao segundo lugar do Giro naquela que foi a primeira vitória em grandes voltas.

Contas feitas, João Almeida ganhou com o tempo de 5.53.27, o mesmo de Geraint Thomas. Seguiram-se Roglic e Eddie Dunbar a 25 segundos, Sepp Kuss a 1.03 e um grupo com Ilan van Wilder, Damiano Caruso, Einer Rubio, Laurens de Plus e Thymen Arensman a 1.16. Na classificação geral, que contou também com as bonificações que ajudaram ainda mais o português, Thomas voltou a ter a camisola rosa e Almeida colocou-se a apenas 18 segundos, tendo Primoz Roglic a fechar o pódio a 29 segundos. Damiano Caruso subiu a quarto mas já a 2.50, à frente de Eddie Dunbar (3.03), Lennard Kämna (3.20), Bruno Armirail (3.22), Andreas Leknessund (3.30), Thymen Arensman (4.09) e Lauren de Plus que fecha o top 10 (4.32).