Era uma situação que tinha dado muito que falar mas que, no meio de toda a polémica depois dos insultos racistas a Vinícius Júnior no encontro do Real Madrid em Valência, quase passou ao lado. O avançado, esse, não deixou que isso acontecesse. E no vídeo de 97 segundos que colocou esta segunda-feira nas suas redes sociais com todos os ataques de que foi alvo este ano, estava lá também esse momento: um boneco negro, com a camisola branca do brasileiro, enforcado no viaduto antes de um dérbi com o Atl. Madrid. Estávamos no final de janeiro, na antecâmara de um encontro a contar para a Taça do Rei, e havia ainda uma tarja ao lado que dizia “Madrid odeia o Real”. A queixa foi apresentada, o resultado chegou na manhã desta terça-feira: quatro indivíduos identificados com a claque Frente Atlético foram detidos, tendo entre 19 e 24 anos e só num caso com antecedentes criminais. No entanto, as ações das autoridades não ficariam por aí.

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Esta manhã, a Polícia Nacional deteve também três pessoas, homens entre os 18 e os 21 anos, suspeitos de terem proferido insultos racistas a Vinícius Júnior no decorrer do encontro com o Real Madrid no Mestalla. O comunicado das autoridades da Comunidade Valenciana explica ainda que os detidos têm nacionalidade espanhola, deixando mais tarde outras explicações ou o aumento do número de implicados. A ação resultou da análise de imagens de vídeo no interior e no exterior do estádio, sendo que o Valencia cooperou em toda a recolha de informação que foi sendo feita desde domingo à noite, quando o jogador ameaçou deixar o relvado tendo mesmo apontado para um dos indivíduos que faziam gestos racistas atrás da baliza.

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Ao todo, e desde 2021, houve dez incidentes racistas e de ódio com Vinícius Júnior no papel de vítima. Daí resultou pouco mais do que nada, entre detenções e castigos aos clubes. Agora o cenário mudou. Mais do que isso, o cenário contrariou algo que muitos temiam depois da análise à denuncia feita após um dérbi.

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Em setembro, antes do jogo entre Atl. Madrid e Real a contar para a Liga espanhola, cerca de 500 adeptos dos colchoneros receberam o autocarro dos merengues com cânticos de “Eres un mono, Vinícius eres un mono”(“É um macaco, o Vinícius é um macaco”, em português). As pessoas não foram identificadas e o caso acabou por ser arquivado. Razão? Apesar de se tratarem de impropérios “desagradáveis e sem respeito”, os mesmos foram proferidos num contexto de “máxima rivalidade” e “apenas durante alguns segundos”. Em paralelo, a surpreendente decisão advogou ainda que os insultos “não podiam ser enquadrados como um delito contra a dignidade da pessoa afetada”. “Essas alegações são uma barbaridade. Disseram que para fazer uma identificação das pessoas teriam de contar com a colaboração do clube, que a polícia teria de fazer uma investigação mais de fundo, a empresa de segurança também”, comentou ao jornal As Esteban Ibarra, líder do Movimento contra a Intolerância de Espanha. Agora o cenário é diferente.

Essa mudança também foi bem percetível nas primeiras decisões depois do encontro em Valência. Por um lado, o vermelho direto a Vinícius Júnior foi retirado e o Comité de Competições voltou a visar o VAR do jogo, referindo que as imagens que foram passadas ao árbitro principal não mostraram todo o filme do que se passou e, como tal, acabaram por “enganar” a visão do lance. Por outro, o mesmo órgão da Real Federação Espanhola de Futebol decidiu fechar de forma parcial o Mestalla, mais concretamente a bancada atrás da baliza onde tudo aconteceu. “Considera-se provado que, tal como escreveu o árbitro no seu relatório, houve gritos racistas contra Vinícius, alterando o normal desenvolvimento do jogo e considerando-se uma infração muito grave. Além disso, o Valencia terá de pagar uma multa de 45.000 euros”, defendeu.

Tudo isto acontece depois de uma grande onda de solidariedade em torno de Vinícius Júnior, que também foi reforçada pelo clube na segunda-feira com uma reunião entre o jogador e o presidente do Real, Florentino Pérez, onde o número 1 do clube voltou a manifestar a total solidariedade por mais um episódio de insultos e gestos racistas contra o brasileiro e a garantir que os merengues farão tudo o que estiver nas suas mãos para evitar futuras situações e para punir todos os casos que aconteceram até aqui na Liga espanhola. O encontro surgiu também na sequência de algumas notícias que davam conta de um descontentamento transversal a pessoas próximas do avançado pelo acumular de casos ao longo da temporada, que no limite poderia levar a que o internacional pedisse para ser vendido por estar demasiado desgastado com esses episódios.

No Brasil, as luzes desligadas do Cristo Redentor em sinal de solidariedade por Vinícius Júnior ficaram como imagem forte do apoio ao jogador mas também em termos políticos foram feitas movimentações para que o assunto não fosse esquecido. Flávio Dino, ministro da Justiça brasileiro, comunicou que o governo do país está a estudar o princípio da extraterritorialidade a propósito dos insultos racistas a Vinícius em jogos da Liga espanhola. “O Código Penal prevê que, em algumas situações excecionais, seja possível aplicar a lei brasileira em caso de crimes contra os brasileiros incluindo no exterior. Isso pode funcionar como uma resposta contra a agressão injusta contra um compatriota”, explicou o ministro brasileiro.