Foi como um toque de alarme para os mais desprevenidos e um despertador em termos internos. Algumas horas depois do Valencia-Real Madrid no Estádio Mestalla, que terminou com uma vitória da equipa da casa entre muita polémica em torno de Vinícius Júnior e os insultos racistas que fizeram com que estivesse para abandonar o relvado antes de ficar e ser expulso no período de descontos, começaram a surgir algumas notícias na ESPN Brasil que davam conta da possibilidade de o jogador deixar o Real e Espanha por ter chegado a um limite. Fontes do clube rapidamente deitaram por terra esse hipotético cenário mas não demoraram a tomar mais uma posição de força perante o que aconteceu. Uma posição que, a vários níveis, se transformou em algo transversal entre desporto, sociedade e política, em território espanhol e pelo mundo.

Vinícius apontou, ameaçou sair após cânticos de “mono”, chorou e acabou expulso: “Espanha já é conhecida como um país de racistas”

“O Real mostra a sua mais veemente repulsa e condena o sucedido ontem [domingo] contra o nosso jogador Vinícius Júnior. Estes acontecimentos constituem um ataque direto ao modelo de convivência do nosso estado social e democrático de direto. O Real considera que estes ataques constituem um delito de ódio, pelo que apresentou a correspondente denúncia à Procuradoria Geral do Estado, no departamento contra delitos de ódio e discriminação, para que investigue o sucedido e se apurem responsabilidades. O artigo 124 da constituição espanhola estabelece como funções do Ministério Público promover a ação da justiça em defesa da legalidade, dos direitos dos cidadãos e do interesse público. Por este motivo, e dada a gravidade dos factos ocorridos, o Real recorreu à Procuradoria Geral, sem prejuízo do seu carácter privado no processo que está a ser instaurado”, anunciaram os merengues através de um comunicado oficial.

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Todos os envolvidos se apressaram a fazer algo para reagir ao sucedido e às duras palavras do jogador após o encontro. O Valencia anunciou que vai banir todos os responsáveis pelos gestos e insultos racistas a Vinícius Júnior, tendo já encontrado um dos adeptos que chamou “mono” (macaco, em espanhol) ao atleta. “O clube assumiu uma postura firme contra o racismo e já atuou com a mesma contundência em 2019, com uma suspensão vitalícia de um adepto que fez gestos fascistas num jogo da Liga Europa”, defendeu. O árbitro fez uma correção em relação ao relatório de jogo inicial, acrescentando aquilo que se passou no minuto 73 quando o jogador foi de novo insultado, apontou para quem estava a ofender e ameaçou sair de campo. O ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha, José Manuel Albares, também condenou o sucedido. “Da parte do governo de Espanha não haverá qualquer dúvida nem qualquer cobertura para qualquer atitude de racismo, de intolerância ou de rejeição do pluralismo”, salientou em Bruxelas.

Logo após o encontro, Carlo Ancelotti, treinador do Real Madrid, tinha sido muito duro na abordagem ao encontro e ao caso com o brasileiro. “Não quero falar de futebol. Do que quero falar? Do que se passou aqui. Acho que é o mais importante. Mais do que uma derrota, não vos parece? Eu sou muito calmo, mas o que aconteceu não pode acontecer. Que um estádio inteiro grite macaco a um jogador e que um treinador pense tirá-lo de campo por causa disso. Há algo de errado nesta Liga. Ele não queria continuar. Disse-lhe que não era justo, que não era culpa dele. Continuou a jogar e, depois, ainda o expulsam por algo sem sentido. Dito isto, temos um problema. Para mim o Vinícius é um dos melhores do mundo. Estes episódios de racismo não podem acontecer. Foi um estádio inteiro, não apenas uma pessoa, como noutros casos”, disse.

O caso saltou fronteiras e, depois da condenação do presidente do Brasil, Lula da Silva, a comunicação social deu conta de uma chamada do ministério das Relações Exteriores à embaixadora espanhola no país, Maria del Mar Fernández Palacions, no sentido de perceber o porquê de novo caso de racismo contra Vinícius Júnior (o oitavo só entre aqueles que foram denunciados). Eduardo Paes, presidente da Câmara do Rio de Janeiro, foi mais longe e visou diretamente o presidente da Liga, Javier Tebas, depois da troca de palavras nas redes com o jogador. “”Vai à m***, filho da p*** Tebas, queres culpar a vítima, imbecil?”, atirou.

De Xavi Hernández, treinador do Barcelona, a Kylian Mbappé, passando por Rafael Leão e muitos outros, foram muitos os futebolistas e antigos jogadores que manifestaram a sua solidariedade com Vinícius Júnior, tal como Gianni Infantino, presidente da FIFA que recordou os três passos a seguir em caso de insultos racistas num jogo: “Primeiro para-se o jogo e anuncia-se. Depois os jogadores abandonam o terreno de jogo e o speaker avisa que, se as agressões continuarem, o jogo será suspenso. O jogo recomeça mas se as agressões prosseguirem, para-se de novo e os três pontos são dados ao adversário”. Até a conta oficial do falecido Pelé fez referência ao sucedido. “Pelé sempre admirou o Vinicius, pela sua alegria e talento. Nas oportunidades que tiveram de conversar, o Rei adorava o carinho e respeito que nutriram um pelo outro. A Fundação Pelé apoia-te e admira a sua coragem. Continua a ser uma voz ativa e nunca deixes de sorrir diante das adversidades. O racismo não tem mais espaço no desporto que tanto amamos”, destacou.

24 horas depois, também Vinícius Júnior voltou a abordar o tema, com uma publicação no Instagram com um filme onde mostra vários episódios de racismo de que tem sido alvo. “A cada rodada fora de casa uma surpresa desagradável. E foram muitas nessa temporada. Desejos de morte, boneco enforcado, muitos gritos criminosos… Tudo registado. Mas o discurso sempre cai em ‘casos isolados’, ‘um torcedor’. Não, não são casos isolados. São episódios contínuos espalhados por várias cidades da Espanha (e até em um programa de televisão). As provas estão no vídeo. Agora pergunto: quantos desses racistas tiveram nomes e fotos expostos em sites? Eu respondo para facilitar: zero. Nenhum para contar uma história triste ou pedir aquelas falsas desculpas públicas”, começou por dizer o avançado brasileiro na sua publicação no Instagram.

“O que falta para criminalizarem essas pessoas? E punirem desportivamente os clubes? Por que os patrocinadores não cobram a La Liga? As televisões não se incomodam de transmitir essa barbárie a cada fim de semana? O problema é gravíssimo e comunicados não funcionam mais. Culpar-me para justificar atos criminosos também não. Não é futebol, é desumano”, acrescentou ainda o internacional do Real.