Dois mafiosos italianos, um veleiro cheio de droga, uma tempestade ao largo dos Açores, uma tonelada de cocaína espalhada pela costa à vista e à mão de qualquer um. Está lançado o mote para a confusão num sítio onde nunca nada se passa. Parece absurdo, mas nem sequer é inventado: foi exatamente o que aconteceu no verão de 2001 em São Miguel. Agora, entre mitos e factos verídicos, a história real foi transformada em série da Netflix — a segunda portuguesa, depois de “Glória”, a chegar ao gigante do streaming.
Apenas dois dias depois de ter ficado disponível, “Rabo de Peixe” estava no top das séries mais vistas em 11 países. Em Portugal ocupa o primeiro lugar, claro, e é merecido. Esta é a história de pessoas que sobrevivem, que sabem que não terão grandes hipóteses na vida e que, com um tesouro entregue numa bandeja, agarram a única hipótese para alterarem o futuro que tinham como certo. Tem ritmo, tem reviravoltas e um elenco sólido e coerente que nos conduz pelos sete episódios sem termos nunca vontade de saltar borda fora.
O primeiro episódio começa com um padre a ter uma overdose e um miúdo do coro a correr para avisar quatro amigos que enchem saquinhos de cocaína num armazém enquanto discutem as qualidades de “Matrix”. Estão apresentados Eduardo (José Condessa), Sílvia (Helena Caldeira), Rafael (Rodrigo Tomás) e Carlinhos (André Leitão), o núcleo principal da história. Com eles recuamos dez dias, para saber como tudo começou.
[o trailer de “Rabo de Peixe”:]
Eduardo, o protagonista, é o típico underdog a quem a vida nunca dá uma abébia. Quando o pai, cego, vai ser operado, o Sistema Nacional de Saúde engana-se no dia. Azar. Quando regressa a casa, o carro avaria. Azar. O visto para emigrar para a América é-lhe negado. Azar. Há anos que é apaixonado por Sílvia, mas é o melhor amigo, Rafael, que namora com ela. Azarucho.
Rafael, uma antiga promessa do futebol que nunca chegou a estrela, vive dos elogios e das memórias. Será sempre um zé ninguém. Sílvia está presa atrás do balcão de um videoclube com filmes americanos que chegam sempre demasiado tarde à ilha. Quer ser outra coisa, mas acaba sempre por desistir — como do concurso de Miss do qual foge a meio por não ter fotos que possam competir com as outras candidatas. No fundo, resigna-se ao papel insignificante que tem no mundo e não está propriamente empenhada em mudar seja o que for. Conformada está também com a relação com Rafael, de quem visivelmente não gosta assim tanto. Carlinhos, gay e espampanante numa comunidade pequena, tradicional e envelhecida, parece ter ultrapassado todos os preconceitos com os quais teve, de certeza, de crescer — é uma pena não termos acesso a uma história mais abrangente desta personagem, que nos levasse até ao passado e nos mostrasse como se transformou na pessoa que é hoje. “És a pessoa mais livre que conheço”, diz-lhe Sílvia. Parece até ser verdade, mas o potencial de Carlinhos e da sua construção ficam por aproveitar.
A personagem com mais densidade é Eduardo: há flashbacks dele em miúdo, a doença da mãe, a influência do uncle Joe (já lá vamos). Há um contexto para as frustrações da versão adulta e para a sua ânsia de sair dali. Os restantes vão vivendo o dia de hoje igual ao de ontem, igual ao de amanhã. Se são felizes? Não. Se vão fazer alguma coisa para mudar isso? Também não. Foi esta vida que lhes calhou na rifa, assim seja. Bebem cerveja, fumam tabaco e charros. Fazer um plano para amanhã ou para daqui a cinco anos não é uma coisa que lhes passe pela cabeça sequer. Por isso, quando a cocaína dá à costa, estão mais empenhados em consumi-la do que em olhar para ela como a porta para saírem da ilha ou de uma vida miserável. Só Eduardo tem esse discernimento e, seguindo as marés, vai à procura dos muitos quilos que não apareceram nas praias. Acaba por arrastar os amigos para um negócio de tráfico de droga que nenhum deles domina. Além dos erros de principiantes que vão cometer, há ainda o pequeno pormenor de os verdadeiros donos da droga andarem à procura dela. Entram em cena os mafiosos italianos, a Polícia Judiciária, escandinavos e até Sandro G, uma referência real da música de São Miguel.
“Rabo de Peixe” foi criada por Augusto Fraga, homem da publicidade com nenhuma outra série no currículo, que se lançou num concurso e acabou por garantir a entrada no ringue da Netflix. A realização é dividida com Patrícia Sequeira (realizadora de “Snu” e “Bem Bom”). O trabalho é irrepreensível e os cenários ajudam (ou não estivéssemos nós num postal vivo chamado Açores). A edição faz lembrar a cadência de “Narcos” (aliás, “Rabo de Peixe” não fica atrás de nenhuma das temporadas desse sucesso da Netflix). A narrativa é empolgante, conduz-nos numa direção para logo a seguir nos trocar as voltas e até nos dá cliffhangers. O final do primeiro episódio pode parecer expectável, mas a forma como nos é apresentado não — e isso faz toda a diferença.
O guião é assinado por Fraga e dois reconhecidos nomes da literatura (e de outros argumentos): João Tordo e Hugo Gonçalves. Tem coerência e sentido de humor, mas porquê tantas asneiras, senhores? Nem uma pessoa que use asneiras como vírgulas acaba todas as frases com “caralho, foda-se”. É que há diálogos em que a troca de palavras entre as personagens se limita a um pingue-pongue de palavrões. Não me chocam, mas já viraram meme por essa Internet fora por algum motivo — ninguém fala sempre assim.
À parte esta nota, não há grandes defeitos a apontar a “Rabo de Peixe”. José Condessa é amplamente competente na sua tarefa de protagonista. O seu semblante preocupado reflete a personalidade da personagem: sempre a ponderar, a calcular, a ajustar o plano. Não consome cocaína, ele sabe que para ganhar dinheiro tem de ter a cabeça (e o nariz) limpo. A paixão que tem por Sílvia podia ser um dos elementos de maior interesse da trama, mas acaba por não ser assim tão relevante. A tensão sexual entre os dois passa para segundo plano quando temos personagens mais descontroladas e imprevisíveis. É o caso de Ian (Afonso Pimentel), um fotógrafo agarrado que tem uma relação disfuncional com a namorada, Bruna (Kelly Bailey). Num mundo de excessos e de ilusões, vemos um Pimentel transpirado e de cabelo oleoso a tentar ser empresário. Gosta de droga e de dinheiro e paira numa espécie de transe constante. Está perfeito.
Depois há Arruda (Albano Jerónimo), o mauzão lá do pedaço. Pai (apenas no papel) de Sílvia, é o manda-chuva do mundo do crime da ilha. Fazer negócios ilegais sem ele saber dá direito a ficar com a cara em versão cozido das Furnas. Desleixado e asqueroso, desviar os olhos da interpretação de Albano Jerónimo é proibido. É impossível gostar dele e, ao mesmo tempo, só queremos que a personagem apareça mais e mais e mais.
A PJ tinha de ter uns inspetores inúteis para chegar Maria João Bastos do continente e poder mostrar como é que se faz. Só que a inspetora Frias (ou Frígida, como lhe chamam localmente) é muitas vezes ultrapassada pelo que se passa à volta. O único a dar-lhe a mão é Salvador Martinha. Por muito competente que esteja no papel de PJ (e está), é impossível não estar constantemente à espera que ele cruze a perna, encoste a mão ao ouvido e faça uma chamada da Plim. Marcantonio del Carlo representa a máfia italiana, mas está sempre demasiado descontraído para alguém que acaba de perder uma tonelada de cocaína e tem a cabeça a prémio em troca de queijo pecorino.
Sobra uncle Joe, ou Pêpê Rapazote. Ele tem duas tarefas. É o narrador que vai contextualizando a história em voz off, numa mistura entre português e inglês. Podia ser irritante, mas até funciona pretty well. Mais para a frente, torna-se parte ativa na narrativa, já que é o tio de Eduardo. Emigrado lá nos States, voltou com o rabo entre as pernas para a ilha depois de ter feito porcaria e ter sido deportado. Se podíamos já estar enjoados da presença de Rapazote nas produções da Netflix? Podíamos, mas não é o caso. O homem é ótimo ator, o uncle Joe é um fora da lei mas aquele tio que ninguém se importaria de ter, a narração encaixa na perfeição. Deem-me uma série sobre o uncle dos States que se sentia preso no mini aquário da ilha, mas que também não encontrou o seu lugar como “little fish (peixe pequeno)” no aquário gigante lá da América. Eu vejo.
Os guionistas de “Rabo de Peixe” tiveram discernimento suficiente para não se porem a inventar com o sotaque local. Os atores não forçam nada, felizmente, isso seria só desviar a atenção para um detalhe pouco relevante.
O desenrolar dos sete episódios é mais interessante do que o final. Há personagens que são abandonadas pouco antes da conclusão e, mesmo que isso possa deixar tudo em aberto para uma possível segunda temporada, era necessário deixá-las posicionadas de alguma forma. Afinal, todos os pescadores sabem que não se deixa nenhum homem para trás.