Depois de duas tentativas para ouvir as testemunhas deste caso, a terceira sessão de julgamento do caso da morte de Jéssica começou com as declarações do pai da criança de três anos, que estava fora do país no ano passado, quando Jéssica morreu. Na presença de todos os arguidos — Inês Sanches, Justo Montes, Ana Pinto, Esmeralda Montes e Eduardo Montes — Alexandrino Biscaia disse que Inês Sanches, mãe de Jéssica, nem sempre autorizava as visitas com a filha. E, sentada atrás de Alexandrino Biscaia, Inês Sanches — detida em dezembro do ano passado e está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada — foi acenando sempre com a cabeça, discordando das declarações de Alexandrino Biscaia. “Eu já não sentia alegria na menina. Havia algo estranho na menina, quando a vi em janeiro.” E, no dia em que Jéssica morreu, a sua mãe entrou em contacto com Alexandrino Biscaia.

– Há aqui uma mensagem que corresponde ao dia em que a sua filha faleceu, uma mensagem recebida às 11h56. ‘Olá, paixão, não te esqueças de mim para mandar para a minha conta’. Houve algum aviso da mãe sobre o estado de saúde da menina? 

– Não. 

Os cinco arguidos e os crimes

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  • Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
  • Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Esmeralda, filha de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.
  • Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.

A criança terá sido dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que a mãe fez por serviços de bruxaria e, acredita o Ministério Público, foi utilizada como correio de droga e agredida várias vezes. Agora, o coletivo de juízes quer ouvir as várias testemunhas para perceber o que se passou nos dias anteriores à morte de Jéssica e como eram as relações da criança e da mãe com vizinhos e conhecidos. As primeiras testemunhas foram chamadas pela acusação e Alexandrino Biscaia, além de falar como testemunha, também quis constituir-se assistente do processo. Com o telemóvel na mão, e depois de falar durante cerca de uma hora, o pai de Jéssica procurou fotografias que diz ter recebido dias antes de a filha morrer e que mostravam marcas de agressões. “Se fizer zoom, veem-se os hematomas no corpo da menina”, explicou. A explicação, no entanto, não convenceu o coletivo de juízes, que considerou que as marcas “não são evidentes”.

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Mas há ainda outro pormenor que o coletivo de juízes quis esclarecer: foi encontrada uma moca dentro de uma mala verde, em casa de Inês Sanches, que continuava a olhar para o chão, enquanto ouvia estas descrições. Esta moca pertencia a Alexandrino Biscaia, que diz ter pedido à mãe de Jéssica para guardar aquele objeto, que era, nas suas palavras, “uma relíquia”. E nessa mala, referiu o juiz, foram encontrados vestígios de Jéssica.

Mas pediu-lhe, porque? 

– Porque eu, basicamente, não tinha um sitio fixo. Isto é uma relíquia. 

E lembra-se como é que guardou a moca na mochila? 

– Estava com uma camisa ou uma camisola. 

A Jéssica alguma vez brincou com a moca? 

– Não. Nem nunca esteve próxima. 

Viu uns lenços dentro da mala? Lembra-se se eram seus? 

– É normal andar com alguns guardanapos e terem ficado lá. 

E roupa de criança? 

– Não, isso não deixei. 

A faca não é sua? 

– Não 

A escova de dentes também não é sua? 

– Não 

– Seria uma escova de dentes usada pela Jéssica? 

– Não sei. 

A moca encontrada na mala verde, em casa de Inês Sanches, não parecia, no entanto, ter tanta importância para a mãe de Alexandrino Biscaia. Maria Lino, que também prestou declarações, desvalorizou este objeto, depois de precisar ver as fotografias que constam no processo. O juiz Pedro Godinho perguntou se aquele objeto tinha sido herdado, mas a resposta foi negativa. “Isto estava lá em casa dos meus pais”, referiu a avó de Jéssica.

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Jéssica nasceu em 2019 e os pais separaram-se em outubro de 2021. “Desde que nos separámos, passei dois fins de semana com a minha filha”, disse Alexandrino Biscaia ao coletivo de juízes. Durante este testemunho, o juiz Pedro Godinho precisou de fazer várias vezes as mesmas perguntas para conseguir uma resposta clara do pai da criança que morreu no ano passado. “Detetou alguma lesão?”, questionou o juiz, referindo-se a um dos fins de semanas em que Alexandrino Biscaia esteve com a filha. Aqui, a resposta foi rápida: “não”. E as questões passaram rapidamente para os arguidos que estavam atrás de si:

– O senhor consome? 

– Sim. 

– Consome o quê? 

– Fumo umas tochas. 

– Isso é o que? Para eu perceber. 

– Haxixe.

– Alguma vez comprou alguma coisa a alguém que está atrás de si? 

– Não 

– Mas conhece estas pessoas? 

– Conheço, porque eles eram vizinhos da minha primeira filha. Mas nunca houve aquela afinidade. 

– Nunca comprou a nenhum deles? 

– Não. 

Estas declarações, no entanto, não convenceram o Ministério Público. A procuradora considerou que existiu falsidade nas declarações e pediu ao tribunal a reprodução do depoimento que Alexandrino Biscaia fez aos inspetores da Polícia Judiciária. E a sessão terminou poucos minutos depois das 17h, uma vez que a funcionária judicial se encontra a cumprir o seu período de greve.

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O segundo dia de julgamento ficou marcado pelas palavras de Eduardo Montes, o único arguido que aguarda sentença em liberdade. O filho de Ana Pinto garantiu em tribunal que a mãe e Inês Sanches “eram amigas”. “Andavam sempre juntas”, acrescentou. “A Inês conheço de vista há uns seis anos, oito anos, por ela ser amiga da minha mãe.”

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Mas as palavras de Eduardo Montes não ficaram por aqui. Apenas na presença do pai — a sua mãe, a sua irmã e Inês Sanches já tinham abandonado a sala e não ouviam as suas declarações –, Eduardo deu alguns detalhes sobre o seu relacionamento com a mãe, acusada de vários crimes, incluindo homicídio: “Os meus filhos não se davam muito bem com a avó. Gostam da avó, respeitam a avó, mas só ficam com o avô. Confiava mais no meu pai. Ela era um bocadinho mais desacertada. Não tinha aquele cuidado com os meus filhos que tinha o meu pai”.

Até agora, as três mulheres que são arguidas neste processo recusaram sempre prestar qualquer declaração. Apenas Eduardo Montes e o seu pai, Justo Montes, quiseram falar. Justo Montes, acusado dos crimes de tráfico de droga, violação e homicídio qualificado, falou logo no primeiro dia de julgamento e, num discurso confuso, negou sempre as acusações de agressões à criança de três anos. “É tudo mentira”, foi repetindo à medida que o juiz Pedro Godinho fazia as perguntas. “Não sei, não tenho nada a ver com isso e não quero saber”, acrescentou. E mesmo quando a funcionária judicial mostrou a Justo Montes as fotografias da autópsia, este não mostrou qualquer empatia pela violência que as imagens transmitiam.

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Jéssica esteve em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes

O fim da vida de Jéssica começou quando, acredita o Ministério Público, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Mas Inês não pagou.

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Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.

Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.

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