Depois de um primeiro dia de julgamento marcado por um discurso pouco coerente de Justo Montes, o único arguido que até agora prestou declarações, e por uma greve dos funcionários judiciais, que atrasou o início da sessão e anulou os trabalhos da tarde, continuou esta terça-feira o julgamento pela morte de Jéssica, que morreu há um ano. O Ministério Público acredita que a criança de três anos terá sido dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que a mãe fez por serviços de bruxaria. Foi utilizada como correio de droga e agredida várias vezes.

Nesta sessão, Inês Sanches, mãe de Jéssica e presa na cadeia de Odemira, entrou algemada — ao contrário daquilo que aconteceu no dia anterior. Enquanto chorava, as mãos só ficaram livres depois uma curta conversa com a sua advogada, que se aproximou de Inês, acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada. E enquanto esta conversa decorria, os funcionários judiciais trouxeram várias caixas de papel, onde estão as provas recolhidas pela Polícia Judiciária — como casacos, isqueiros e outros objetos que serão mostrados ao longo do dia.

Os cinco arguidos e os crimes

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  • Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
  • Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Esmeralda, filha de Ana Pinto, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado e um crime de homicídio qualificado.
  • Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado e um crime de violação agravado.

Colocados os caixotes à frente da mesa do coletivo de juízes, as três mulheres que se encontram em prisão preventiva — Inês Sanches, Ana Pinto e Esmeralda Montes — foram novamente algemadas e saíram da sala. Ficou apenas Justo Montes, o companheiro de Ana Pinto, que prestou declarações esta segunda-feira, e o seu filho Eduardo Montes, o único arguido que está em liberdade e também o único que não está acusado de homicídio — responde pelos crimes de tráfico de droga e violação –, e que quis prestar declarações. Mas os detalhes sobre a presença de Jéssica em casa dos seus pais, onde terá sido agredida, são vagos e praticamente inexistentes. “Perguntei quem era, a minha mãe disse que era filha de uma amiga dela que pediu para ficar com ela”, explicou Eduardo Montes, que é vizinho dos pais, que estão os dois presos e acusados das agressões e da morte de Jéssica.

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Mas, se não conhecia Jéssica, o mesmo não acontece com a mãe desta criança. “A Inês conheço de vista há uns seis anos, oito anos, por ela ser amiga da minha mãe”, adiantou. “Elas eram amigas, andavam sempre juntas.” Nas cerca de duas horas em que prestou declarações, Eduardo Montes deu ainda algumas pistas sobre a relação que tem com a mãe, Ana Pinto, acusada de vários crimes, incluindo homicídio: “Os meus filhos não se davam muito bem com a avó. Gostam da avó, respeitam a avó, mas só ficam com o avô. Confiava mais no meu pai. Ela era um bocadinho mais desacertada. Não tinha aquele cuidado com os meus filhos que tinha o meu pai”.

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Ovos metálicos, o canivete da defesa, os cigarros e a construção civil

“Não sei, meritíssimo”, foi repetindo Eduardo Montes. Mas o juiz Pedro Godinho focou duas questões: os cigarros encontrados no chão da casa dos pais e que tinham sido fumados por si e as ferramentas que utiliza quando faz trabalhos na construção civil. Em relação aos cigarros, foram encontradas beatas com vestígios de ADN de Eduardo Montes e o tribunal quis saber como é que foram parar ao chão e, mais importante, se aquelas beatas foram ali deixadas durante os cinco dias em que Jéssica esteve naquela casa.

– O senhor fuma? 

– Fumo, sim, senhor.

– Vimos umas beatas lá em casa dos seus pais. O seu pai atirava as beatas para o chão? 

– Sim, às vezes. 

– E o senhor? 

– Não, tenho um cinzeiro lá na escada do prédio. 

– Acontecendo isso (deitar a beata para o chão), a beata pode ficar esquecida muito tempo? É varrida uns dias depois? No dia? 

– Para ser sincero consigo, meritíssimo, não sei. 

– Não há uma beata com vestígios seus, que tenha sido fumada por si? 

– É provável. Nas buscas da policia judiciária — eu fumo muito –, não sei se nesse dia deixei alguma beata. Recordo-me de ter estado em casa do meu pai na segunda ou terça-feira e ajudei o meu pai a montar uma cama.

Sobre as ferramentas de trabalho, Eduardo Montes explicou que não trabalha todos os dias, fazendo, por vezes, alguns trabalhos na construção civil. O juiz Pedro Godinho quis saber quais os instrumentos que utiliza no trabalho — sem explicar se foi encontrado algum instrumento relacionado com este trabalho durante as buscas, que poderá estar relacionado com as agressões a Jéssica. “Espátulas, lixas, mas há várias ferramentas”, respondeu.

E em relação ao crime de tráfico de droga, Eduardo Montes também negou qualquer acusação:

– Consome? 

– Sim, meritíssimo. Haxixe. 

– Alguma vez vendeu? 

– Não, meritíssimo. 

– Nunca foi ninguém la a casa? 

– Há lá um beco e costumo estar lá com uns amigos a beber e a fumar. 

– E consome outro tipo de estupefaciente? Cocaína, por exemplo. 

– Não, meritíssimo, nunca na minha vida.

Num dos casacos recolhidos durante a investigação, os inspetores encontraram vários ovos metálicos, de dimensões muito reduzidas e que servem para transportar droga. Aliás, o Ministério Público acredita que, dias antes da sua morte, Jéssica foi levada até Leiria e que Ana Pinto e a sua filha Esmeralda “introduziram no ânus deJéssicaca uma quantidade não concretamente apurada de cocaína”. E o coletivo de juízes quis que Eduardo Montes visse esses ovos metálicos: a funcionária judicial foi até às caixas, tirou os objetos, abriu-os e mostrou-os. “Nunca vi, não sei”. Mas o coletivo insistiu, quis mostrar todos os ovos encontrados e o último ovo só foi aberto graças ao canivete transportado por um dos advogados.

À semelhança do primeiro dia de julgamento, o início da sessão não começou à hora marcada. No exterior do edifício do Tribunal de Setúbal, os funcionários judiciais vestiram novamente as camisolas pretas e fizeram greve até às 11h. A mensagem era igual à transmitida no dia anterior: “Justiça para quem nela trabalha”. Esta nova greve deverá prolongar-se até ao final de julho, mas este tribunal já avisou que poderá pedir serviços mínimos para este processo, uma vez que em agosto começam as férias judiciais. “Há arguidos presos, estão em causa os direitos e liberdades de pessoas”, disse esta segunda-feira o juiz Pedro Godinho.

Duas testemunhas pediram saída dos arguidos e do público da sala, mas afinal uma delas mudou de ideias e o sistema informático falhou

Durante a tarde, e com o atraso habitual, começaram a ser ouvidas as testemunhas chamadas pela acusação. Estavam cinco os arguidos sentados há menos de cinco minutos, quando a funcionária judicial fez sinal ao juiz Pedro Godinho. Duas testemunhas pediram a saída da sala dos arguidos e do público, incluindo jornalistas. O coletivo de juízes, depois de uma “breve análise”, decidiu dar luz verde ao pedido, apesar de uma das advogadas de defesa, Eduarda Filipe, ter pedido a palavra para se opor quanto à saída do público.

“O tribunal nada tem a ver com o que é publicado. Mas se tudo é publicado, isto deixa de ser um julgamento e passa a ser uma reunião zoom“, disse o juiz, dirigindo-se aos jornalistas. Mas pouco depois de 15 minutos fora da sala do tribunal, os agentes da PSP deram ordem para entrar. Afinal, uma dessas testemunhas, vizinha de Ana Pinto, Esmeralda, Justo e Eduardo, quis falar com a presença do público e respondeu às questões dos advogados de defesa. Sobre os serviços de bruxaria, alegadamente feitos pela arguida Ana Pinto, esta testemunha referiu apenas que não tinha conhecimento e que essa informação “foi uma surpresa”.

O julgamento desta terça-feira ficou, no entanto, pela primeira testemunha. É que não foi só a greve que atrasou os trabalhos deste processo: a meio da tarde, o sistema informático deixou de funcionar e, por isso, não foi possível gravar os testemunhos. Ficaram então marcadas as próximas sessões para a próxima semana — 12 e 15 de junho.

“Não sei, não tenho nada a ver com isso e não quero saber”

No primeiro dia de julgamento, foi apenas ouvido Justo Montes, o companheiro de Ana Pinto, que terá feito os serviços de bruxaria à mãe de Jéssica. Este homem está acusado de três crimes: tráfico de droga, violação e homicídio qualificado. E está detido, tal como as restantes três mulheres — Ana Pinto, Esmeralda Montes e Inês Sanches — acusadas também de homicídio. As declarações de Eduardo Montes estavam marcadas para a tarde, mas a greve dos funcionários judiciais obrigou ao adiamento da sessão.

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Durante a manhã, Justo Montes disse apenas que não se lembrava de ter visto qualquer agressão à criança de três anos e negou, aliás, qualquer responsabilidade nas marcas que a autópsia revelou. “É tudo mentira”, foi repetindo à medida que o juiz Pedro Godinho fazia as perguntas. “Não sei, não tenho nada a ver com isso e não quero saber”, acrescentou. E mesmo quando a funcionária judicial mostrou a Justo Montes as fotografias da autópsia, este não mostrou qualquer empatia pela violência que as imagens transmitiam.

Apesar da insistência do coletivo de juízes do Tribunal de Setúbal, Justo Montes não apresentou qualquer justificação para as múltiplas marcas no corpo e na cara de Jéssica, reconhecendo apenas que a criança caiu de uma cadeira. “Foram encontrados vestígios da Jéssica em isqueiros que estavam em sua casa”, disse o juiz Pedro Godinho, que não obteve, mais uma vez, uma resposta clara.

Bruxaria, dívidas e pancada

O Ministério Público acredita que o fim da vida de Jéssica começou quando, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Mas Inês não pagou.

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Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.

Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.