Jéssica tinha três anos quando morreu. Foi dada como moeda de troca para o pagamento de uma dívida que a mãe fez por serviços de bruxaria e, acredita o Ministério Público, foi utilizada como correio de droga e agredida várias vezes. Esta segunda-feira, um ano depois da sua morte, começa o julgamento das cinco pessoas que o Ministério Público acusa dos crimes de homicídio, rapto, ofensas à integridade física, tráfico de droga e violação. Entre os cinco arguidos que estão na sala do Tribunal de Setúbal, está a mãe de Jéssica, Inês Sanches, que foi detida em dezembro do ano passado e está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada. Ao coletivo de juízes, Inês Sanches disse que não vai prestar quaisquer declarações.

Ana Pinto, a sua filha Esmeralda e o marido Justo Montes entraram na sala algemados, ao contrário de Inês Sanches que, apesar de estar também em prisão preventiva na cadeia de Odemira, não chegou algemada. O único arguido que não está preso é Eduardo Montes, filho de Ana Pinto, que entrou na sala antes dos restantes arguidos e é o único que não está acusado de homicídio. “Estás tão lindo, meu amor”, disse a mãe, assim que se sentou à frente do coletivo de juízes, sendo logo avisada por um dos guardas prisionais presentes. Foi em casa destes arguidos que Jéssica terá ficado e terá sido agredida várias vezes com palmadas, murros e bofetadas.

Os cinco arguidos e os crimes

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  • Inês Sanches, mãe de Jéssica, está acusada de um crime de homicídio qualificado e um crime de ofensas à integridade física qualificada.
  • Ana Pinto, mulher que terá feito os serviços de bruxaria, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Esmeralda, filha de Ana Pinto, está acusada de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado, um crime de coação agravada na forma tentada, um crime de homicídio qualificado, um crime de rapto, dois crimes de rapto agravado, dois crimes de ofensas à integridade física qualificada.
  • Justo Montes, companheiro de Ana Pinto, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado.
  • Eduardo Montes, filho de Ana Pinto e de Justo Montes, está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado

Primeiro, o único arguido que disse querer prestar declarações foi Eduardo Montes, que está em liberdade e acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado. No entanto, Justo Montes mudou a sua intenção, depois de a defesa ter referido que, afinal, este queria falar. “Vamos repetir a perguntar: quer prestar declarações?”, perguntou o juiz Pedro Godinho. Desta vez, disse que sim. Dos cinco arguidos, as três mulheres não quiseram falar.

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“É tudo mentira”, disse Justo Montes, que está acusado de um crime de tráfico de droga agravado, um crime de violação agravado e um crime de homicídio, confirmando que Jéssica esteve em sua casa durante cinco dias, mas negando quaisquer agressões à criança.

– O que é que lhe disseram? 

– Que a miúda vai ficar uns dias e depois a mãe vem buscá-la. Depois não sei mais nada.

– E a miúda depois ficou lá a fazer o quê? 

– Eu não vi nada. Eu não sei. Eu nunca estava em casa.

Num discurso pouco claro, Justo Montes negou conhecer Inês Sanches, mas o juiz parou o raciocínio quando este arguido disse que Jéssica comeu em sua casa, durante aqueles cinco dias, ao contrário daquilo que acontecia quando estava com a mãe: “A mãe dava-lhe só iogurtes”. Mas os esclarecimentos continuaram pouco precisos. “O senhor tem o direito a dizer o que quiser, mas as coisas têm de fazer sentido”, alertou o juiz.

A Justo Montes foram mostradas várias fotografias do corpo da criança, na altura da autópsia, para que este pudesse ver as lesões e confirmar se tinha visto alguma daquelas marcas quando Jéssica estava em sua casa. “Não vi, não me lembro”, disse sempre, sem mostrar qualquer expressão ao ver as imagens da criança.

– Chegou a ver a menina sem cabelo? 

– Não. 

– Viu alguma coisa? 

– Ah, só que a menina caiu da cadeira. Perguntei à minha mulher, ‘o que é que se passa com a miúda?’ E ela disse que não era nada.

– Viu o ferimento? 

– Vi. Bateu com a boca na cadeira.

A sessão estava marcada para as 9h15, mas a nova greve dos funcionários judiciais, que se mantém até ao dia 14 de julho, atrasou o início do julgamento por mais de uma hora. À porta do tribunal, os trabalhadores gritavam as palavras escritas nas camisolas pretas que vestiam: “Justiça para quem nela trabalha”. Durante a tarde, a paralisação manteve-se e a segunda parte da sessão, marcada para as 14h30, acabou por não acontecer. Eduardo Montes, o arguido que aceitou também prestar declarações, deverá falar terça-feira de manhã. Depois seguem-se as testemunhas chamadas pelo Ministério Público e pela defesa. “Pelos vistos há duas greves a decorrer. Ficamos sem saber o que é o futuro. Esta greve está prevista até ao inicio das férias judiciais”, referiu o juiz Pedro Godinho, acrescentando que, uma vez que a greve se mantém até às férias judiciais, o tribunal poderá pedir serviços mínimos para este caso. “Há arguidos presos. Estão em causa os direitos e liberdades de pessoas.”

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Depois do juiz Pedro Godinho, e com várias dúvidas, foram feitas mais perguntas pelo coletivo de juízes. E, mais uma vez, a funcionária judicial dirigiu-se para junto de Justo Montes, com um dos volumes do processo na mão. No meio daquelas páginas, estavam mais fotografias da autópsia de Jéssica, com múltiplas marcas de violência, incluindo na cara. Mas as respostas foram as mesmas: “Não sei, não tenho nada a ver com isso e não quero saber”. A palavra voltou então para o juiz Pedro Godinho, numa tentativa de esclarecer as queimaduras que a criança tinha no corpo.

– O senhor fuma? 

– Fumo. 

– Como é que acende o cigarro? 

– Então, com um isqueiro ou com fósforos. 

– E a sua neta brinca com isqueiros? 

– Não, não. 

– Porquê? É que foram encontrados vestígios da Jéssica em isqueiros que estavam em sua casaOnde é que guarda os isqueiros? 

– No bolso. 

– O isqueiro está sempre ao pé de si? 

– Sempre no bolso. 

– Pois, foi onde foi encontrado o isqueiro. Como é que foram encontrados vestígios da Jéssica no seu isqueiro? 

Como a tantas perguntas, esta última também não teve resposta.

“Palmadas, murros, bofetadas e pancadas”

O Ministério Público acredita que o fim da vida de Jéssica começou quando, em maio do ano passado, a sua mãe decidiu recorrer a serviços de bruxaria para tentar salvar a sua relação com o namorado. Estes serviços foram, aliás, pedidos a Ana Pinto, uma das arguidas e acusada dos crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado, ofensas à integridade física, tráfico de droga, violação e coação agravada. Por 100 euros, a mulher entregou “um saco com diversas folhas/ervas para colocar debaixo da cama”. Inês não pagou.

Quando a dívida atingiu os 200 euros, a mulher que fez a tal bruxaria, em conjunto com os arguidos Esmeralda e Justo Montes, “engendraram um plano com vista a exigirem à arguida o pagamento, exigindo-lhe, então, a entrega da filha como garantia desse pagamento”. Jéssica terá passado a ser a moeda de troca pelas dívidas e terá estado em casa dos arguidos, pelo menos, três vezes.

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Dois dos arguidos, “fazendo uso da sua força muscular, desferiram na cabeça e no corpo de Jéssica, com as mãos ou outras parte do corpo ou objetos, um número não concretamente apurado de palmadas, murros, bofetadas e pancadas, provocando-lhe um hematoma na hemiface esquerda, os lábios feridos, hematomas pelo corpo e dores”.

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