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O que nem sempre se vê numa cidade e que nunca se esconde na fotografia

Este artigo tem mais de 1 ano

Em “Lisboa Mesma Outra Cidade", a fotografia documental rompe com as imagens de uma capital que não existe mais. O livro pretende "destapar" o que nem sempre se vê para motivar a reflexão.

António Júlio Duarte revisitou a linguagem do postal e iluminou os seus “ângulos mortos”
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António Júlio Duarte revisitou a linguagem do postal e iluminou os seus “ângulos mortos”

António Júlio Duarte

António Júlio Duarte revisitou a linguagem do postal e iluminou os seus “ângulos mortos”

António Júlio Duarte

Era mais uma dessas manhãs atordoadas pelas notícias do aumento das taxas de juro do crédito à habitação e a forma como se manifestam no bolso dos portugueses, quando nos sentámos à conversa com Catarina Botelho e David Gueniot, diretores artísticos deste novo livro. O ponto de encontro era virtual, mas as telas passavam por diferentes pontos do mundo: Portugal, Alemanha, Espanha e França.

Lisboa Mesma Outra Cidade é a cidade fotografada por seis artistas — António Júlio Duarte, Pauliana Valente Pimentel, Pedro Letria, Beatriz Banha, Hugo Barros, Mariana Viegas – e escrita por três outras artistas, Djaimilia Pereira de Almeida, Patrícia Melo e Joana Braga, que recorrem às mais diversas lentes para olhar para Lisboa.

Apesar de a cidade atravessar-se não numa, mas em várias cordas esticadas, ao longo da última década havia qualquer coisa onde se vivia um lugar, ainda que se representasse outro. “As imagens com filtro, meio congeladas” não dialogavam com a capacidade de urgência e ação que era necessária. Por essa razão, Catarina Botelho e David Gueniot reuniram um conjunto de ensaios que nos transportam para outros lugares: dão forma a um livro com veia documental que percorre espaços, tempos e lugares que quebra a corda daquela Lisboa que não se quer ver desde 1990.

A capa de "Lisboa Mesma Outra Cidade", livro publicado pela Ghost Editions

De um lado, a austeridade, radicalmente transformada pelo turismo, e do outro a crise sanitária. Foi por volta de 2017 que Botelho e Gueniot conversaram sobre a necessidade de pensar melhor sobre a imagem de Lisboa. Seguiram-se três encontros que serviram de investigação preliminar do livro, decorridos no Teatro do Bairro Alto. O primeiro aconteceu em março, que remetia aos gráficos dos anos 1990, seguiu-se o ano 2000, ligados à crise financeira em Portugal e, por último, uma terceira conversa que se concentrava entre os anos de 2015 e 2021. “Foram feitos mais de 30 trabalhos sobre Lisboa. Alguns eram totalmente inéditos, outros já publicados”, elucida Gueniot.

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Ainda assim, a construção visual das imagens (mais ou menos institucionais) que até então circulavam estava muito ligada a uma narrativa de que Lisboa se distancia há muito tempo. “Esta ideia postal que bebe da imagem do imobiliário. Acompanhámos e analisámos aquilo que que estava a ser mostrado como Lisboa e era tudo associado ao centro histórico. Lisboa era uma cidade romântica, turística, com uma imagem muito crua, de certa forma continuada por um espírito modernista que existia nos anos 1990 e que projetava uma Lisboa finalmente ligada à Europa”, remata Catarina Botelho.

Recuar mais de duas décadas foi uma tarefa que percorreu vários pontos cegos. Se a origem deste questionar de imagens se esbate com um status visual “monopolizado por um imaginário turístico, uma cidade romântica, uma cidade terna, demasiada movimentada”, é também no presente que se vive um ponto cego.

Por essa razão, a disrupção e a necessidade de olhar para Lisboa “com olhos de ver” torna-se o impulso para Lisboa Mesma Outra Cidade. As representações lógicas compõem outras formas de ver a cidade e, nesse sentido, os diretores artísticos do livro encomendaram os seis ensaios com uma razão em particular: “Queríamos que o fotógrafo traduzisse as suas vivências na cidade, a sua forma de ver e de se ligar à cidade dentro da fotografia”, continua David Gueniot.

No folhear das últimas duas séries fotográficas, concentram-se os ritmos “extramuros”, lugares esses em que Hugo Barros explora junto de diferentes bairros de Lisboa

Hugo Barros

Os projetos de fotografia documental de uma cidade são escassos em Portugal. Os artistas acreditam que isso se deve a uma falta de tradição. “Falta uma cultura que veja a fotografia enquanto ferramenta de documentação, mas mais ainda enquanto reflexão”, começa por explicar o diretor artístico do livro.

Uniformidade, representação geral da cidade ou algo de teor mais sintético eram as “lentes” contestadas. Pediam algo com corpo, história e idade, “tratava-se da ideia de ligação e de reflexão e não tanto da projeção da cidade”.  Não se intrometeram no lugar, no espaço ou no tempo. As únicas premissas resumiam-se a questões como “qual é a tua Lisboa?” e “para onde sentes necessidade de olhar agora?”. Nove artistas responderam a estas questões.

Completando séries fotográficas, divididas em ensaios visuais com cerca de trinta páginas, o livro leva-nos a refletir sobre a cidade que (não) vemos. António Júlio Duarte revisitou a linguagem do postal e iluminou os seus “ângulos mortos” e Pauliana Valente Pimentel transportou-se para uma outra dimensão, a geracional. Pedro Letria e Beatriz Banha levantaram o véu às condições de habitação precárias, à gentrificação e desvendaram as ruas dando palco a àquilo que são as realidades de oposição dos postais.

Já no folhear das últimas duas séries fotográficas, concentram-se os ritmos “extramuros”, lugares esses em que Hugo Barros explora junto de diferentes bairros de Lisboa e os espaços verdes que Mariana Vegas concilia entre espaços-tempos. A cidade, além “dos clichés e estereótipos veiculados pelo tourist gaze”, como se lê e vê no livro, tem também outra dimensão experiencial. É nesse sentido que os textos de Djaimilia Pereira de Almeida, Joana Braga e Patrícia Portela invocam a cidade como lugar de “sedimentação do tempo”, onde a memória individual se encontra com uma história coletiva. Há um ponto de encontro universal que torna esse diálogo que volta à base.

Beatriz Banha está entre os que procuraram levantar o véu às condições de habitação precárias, à gentrificação e desvendaram as ruas dando palco a àquilo que são as realidades de oposição dos postais

Beatriz Banha

Portugal não adota esta “cultura da fotografia enquanto ferramenta de documentação” desde o final dos anos 1990, contrariamente a França e Espanha que encomendam regularmente sessões e emissões fotográficas levando os fotógrafos a percorrer o país de norte a sul. No entanto, Botelho e Gueniot acreditam que a fotografia precede dos mecanismos da construção da cidade para criarmos uma ligação com sua cidade.

Se por um lado não se mostra comum, por outro existe um “receio desses olhares”. Para Catarina Botelho há uma sensação social e cultural que receia o que vão devolver: “Às vezes o poder político não convive tão bem com essa reflexão crítica ou com esse olhar, que não é um olhar propagandístico, nem publicitário”.

Dar continuidade a este diálogo e ao projeto é algo que está em vista para os diretores artísticos. Enquanto “aperitivo” o contributo que esperam é o início de uma produção que rompa com as imagens únicas da cidade. “Que zangue” e que impeça “a violência de se viver numa realidade que não é a nossa”, partilha Catarina Botelho. “Precisamos de outros olhares, de outras imagens que nos permitam sair dessa violência que era a imposição de uma coisa que não era real”, termina.

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