De “Perdidos” a “Manifest”, de “Serpentes a Bordo” a “Aeroplano”, há qualquer coisa nos aviões que atrai argumentistas de ficção — nem que seja porque, enquanto escreve, em princípio o argumentista está com os dois pés na terra. Os meios de transporte já foram inspiração para as mais mirabolantes histórias, dos comboios às aeronaves. O pós-11 de Setembro veio criar todo num novo contexto e a nova “Hijack” vem mais uma vez confrontar-nos com as possibilidades do medo na hora de colocarmos os olhos na televisão.
Se “Perdidos” ou “Manifest” – duas séries deste século com bastante sucesso, centradas em eventos com aviões – exploram a experiência coletiva do “e se algo de muito estranho tivesse ocorrido com todas estas pessoas naquele voo?” e fascinam pelo mistério sugerido. “Hijack” vem pelo mesmo caminho. E para isso, a série da Apple TV+ escolheu bem o protagonista.
Idris Elba é Sam Nelson, um tipo que está no Dubai e quer regressar depressa a Londres para tentar salvar o casamento. Mal sabe ele que é impossível de salvar (não é spoiler, é informação que chega muito cedo no primeiro episódio). No Dubai, ou para onde é chamado, tinha um objetivo: fechar um negócio entre empresas, porque ele é o melhor naquilo que faz, ou seja, negociar. Quer-se um tipo assim dentro de um avião que será sequestrado e Elba funcionará ao longo dos sete episódios como um bom antídoto para o típico herói de ação dentro de um avião: apesar de ser um tipo com um físico apto, contraria a lógica da força bruta. Também não é tão cerebral quanto se julga, não é o típico “leitor de situações” que adivinha jogadas e antecipa movimentos. Elba fala e é através da conversa que percebe onde poderá tocar. É um trunfo, tanto para a personagem como para nós, espectadores. “Hijack” é melhor do que seria de esperar.
[o trailer de “Hijack”:]
Porque, lá está, tanto a série como o espectador começam dentro do avião. O sequestro é tão funcional e inesperado que se pensa imediatamente no 11 de Setembro, como se tivesse passado tempo suficiente para enfrentar fantasmas e construir ficção a partir de uma série de códigos da aviação a favor do thriller. A ligação Dubai-Londres dura sete horas – e a série tem sete episódios, sendo cada um mais ou menos uma hora dessa viagem – e nas primeiras horas do sequestro apenas quem está no avião – e o espectador – sabem dessa eventualidade. Em terra há suspeitas, mas durante as duas primeiras horas pouco está a acontecer para se lidar com a ocorrência.
Parece uma coisa simples, já vista, mas o modo como George Kay e Jim Field Smith pensaram nisto tudo deixa-nos desarmados. Seja pelo objetivo curto – sete horas/sete episódios – ou pela forma como as coisas, quando se desenrolam, deixam de ser apenas sobre um avião sequestrado e passam a ser sobre um problema diplomático em tempo real. À medida que o tempo avança, o tempo em terra passa a ser maior, o que funciona como uma espécie de libertação do sentimento de “cabin fever” dos primeiros três episódios, que se desenvolvem muito no ar, dentro de um avião.
Mas ao mesmo tempo estamos cá fora, o que se passa dentro do avião aquece. Um bom balanço, portanto, duplamente equilibrado com a informação que se vai dando sobre o sequestro: as motivações são um segredo durante muito tempo e a única coisa que se dá a morder até determinado momento é que, além dos cinco sequestradores dentro do avião, também há tipos em terra a fazerem serviço. O quê e para quê? Um mistério.
Como se fosse um mistério que não se precisasse de saber, a tensão é tão elevada sempre, que os motivos do sequestro estão sempre em segundo ou terceiro plano. Parece que não, mas é um feito. “Hijack” não é nenhuma obra-prima, mas tendo em conta que os thrillers vivem cada vez menos de serem thrillers — porque procuram ser mil outras coisas ao mesmo tempo — o facto de ser uma boa cascata de ação é motivo de regozijo.
O espectador irá – se for fã – lembrar-se com frequência de “24”. “Hijack” é filha da mesma escola, com o tipo de contenção e gestão de informação que “24” tinha no seu pico (ali entre a segunda e quarta temporada). Só que com um outro tipo de protagonista. Idris Elba convence-nos que é um tipo que só quer regressar a casa. Não é indiferente aos outros passageiros, à sua sobrevivência, nem o diz com egoísmo, é apenas um protagonista consciente das suas limitações naquela situação, naquele lugar, contra aquelas pessoas. Cabe-lhe fazer o melhor que pode, por isso, é sempre tão reticente face a atos de heroísmo que outros pretendem executar. Não por calculismo, mas porque parece não acreditar – e, por arrasto, a própria série parece não acreditar – em heróis.
“Hijack” entusiasma do início ao fim. Dois dos episódios já estão disponíveis, os restantes cinco chegarão semanalmente. A série não mata só as saudades de um bom thriller. Dá uma outra grande personagem de televisão a Idris Elba (depois de Stringer Bell e Luther), recupera o potencial de um bom sequestro no ar para a ficção e dá poder aos vilões que adoram o anonimato. Tudo em sete horas, sem excessos nem desvios.