A embaixadora da Ucrânia em Lisboa, Maryna Mykhailenko, lamentou que o programa de formação de pilotos de combate ucranianos tenha sofrido atrasos por questões técnicas, mas afirmou que está prestes a começar em diversos países, incluindo Portugal. Em entrevista à Lusa, a primeira desde que foi colocada em Lisboa pelo Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, em fevereiro passado, Maryna Mykhailenko reiterou o pedido de Kiev para que os aliados cheguem a um entendimento para o fornecimento de caças modernos como os norte-americanos F-16, que Portugal também possui, à semelhança do que aconteceu no passado recente com o envio de tanques pesados como os Leopard, de fabrico alemão.
“Pensávamos que os treinos começariam em junho, mas infelizmente não aconteceu por uma questão técnica, porque precisámos de mais tempo para a preparação [da formação], mas tenho certeza de que esse treino vai começar em breve“, afirmou a diplomata, num momento em que a Ucrânia tem em curso uma contraofensiva para recuperar território ocupado pelas forças russas que invadiram o país em 24 de fevereiro de 2022.
Os parceiros de Kiev estão a coordenar os seus esforços para preparar o processo dos pilotos de combate e para que “nos próximos dias os treinos possam começar”, adiantou.
Todos os pormenores, incluindo os números de pilotos, estão a ser acordados e coordenados entre os países no âmbito da coligação de caças, liderada pelos Países Baixos e pela Dinamarca, esclareceu a embaixadora, 49 anos, e que anteriormente ocupou vários postos na embaixada da Ucrânia em Roma e diversos cargos relacionados com política europeia no Ministério dos Negócios estrangeiros de Kiev.
A embaixadora disse que o apoio militar de Portugal tem sido “muito importante para a Ucrânia”, citando em concreto a participação de Lisboa na coligação internacional de envio de tanques, ao ceder três Leopard 2, e também no programa de formação de pilotos.
No entanto, Kiev pretende mais e considera essencial para o sucesso da sua contraofensiva o controlo do seu espaço aéreo, pedido repetidamente a cedência de caças modernos.
Países como a Polónia ou a Eslováquia enviaram caças Mig-29, de fabrico russo, mas a transferência de F-16 para a Ucrânia não é consensual entre os países aliados, a começar pelos Estados Unidos, em vésperas da cimeira da NATO, a decorrer em Vílnius, Lituânia, em 11 e 12 de julho.
Claro que precisamos de mais aviões de combate. Precisamos de nos concentrar na operação ofensiva, e precisamos de mais componentes para o sistema de defesa aérea”, insistiu a embaixadora em Lisboa
Mykhailenko recordou os bombardeamentos intensivos das forças russas contra o seu país atingindo alvos civis, como sucedeu na semana passada em Lviv, no oeste, perto da fronteira com a Polónia, e a centenas de quilómetros das linhas de combate, onde um ataque aéreo contra uma zona residencial deixou pelo menos sete mortos, segundo as autoridades locais, e dezenas de feridos.
Em relação à relutância de um acordo dos parceiros de Kiev sobre envio de caças e armamento aéreo, Maryna Mykhailenko lembrou que este foi um tema central na última reunião do grupo de contacto para a Ucrânia em Ramstein, na Alemanha, e manifestou a sua confiança: “Vai acontecer, veremos”.
Ucrânia reconhece “apoio incondicional” de Portugal e espera pela visita de Marcelo
A diplomata agradeceu o “apoio incondicional demonstrado por Portugal desde o início da agressão russa”, e confirmou que o Presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, é esperado em Kiev ainda este ano, embora sem fornecer datas indicativas por razões de segurança.
“Esperamos ansiosamente pela visita do Presidente [Marcelo Rebelo de Sousa] à Ucrânia porque, se não me engano, a última visita [de um chefe de Estado português] foi há cerca de duas décadas e é tempo de organizá-la”, declarou, referindo-se à deslocação de Jorge Sampaio a Kiev em 1998.
Esta visita segue-se a outras, de altos representantes do Governo português, como o primeiro-ministro, António Costa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, a ministra da Defesa, Helena Carreiras, e também o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, a que se somou a deslocação do chefe da diplomacia ucraniana, Dmytro Kuleba, em maio a Lisboa, cerca de um ano depois de Zelensky ter feito um discurso por videoconferência na Assembleia da República.
Além de equipamento militar, o que inclui os Leopard 2, viaturas blindadas de transporte de pessoal M113, geradores de grande capacidade para produção de energia elétrica, munições de 120mm, equipamento médico e sanitário, e possibilidade de utilização da indústria têxtil portuguesa para a produção de fardas, e ainda do acolhimento de refugiados, Portugal apoia a criação de um tribunal especial para o crime de agressão na Ucrânia e comprometeu-se a reconstruir escolas na província de Jitomir, 150 quilómetros a oeste de Kiev, em concreto o Liceu 25, destruído por um ataque aéreo logo no início da invasão russa e que foi visitado por Cravinho em agosto do ano passado.
Em breve, deverá ocorrer uma reunião com os parceiros estónios, também envolvidos neste assunto, num processo ainda em curso, implicando “contactos próximo com as autoridades e elas estão empenhadas em implementar esse projeto e começar a reconstrução muito em breve”, o que exige, de acordo com a diplomata, detalhes técnicos por se tratar de um instalação destinada a crianças e que não se limitará a uma mera obra mas também à resposta em termos de elevados padrões educativos.
A propósito, Maryna Mykhailenko, também destacou um projeto assumido pela Câmara Municipal de Cascais — a reconstrução de um jardim de infância em Busha, localidade satélite de Kiev, temporariamente ocupada no início da guerra, pelas forças russas, que entretanto abandonaram a região deixando um rasto de destruição e o massacre de dezenas de civis.
“Estamos muito gratos ao presidente de Cascais e à sua autarquia pelo apoio financeiro prestado em Busha e Irpin [na mesma zona e igualmente destruída pelas forças russas], comentou também numa alusão ao segundo município português que recebeu mais refugiados ucranianos (3798, apenas atrás de Lisboa, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de abril].
De acordo com a embaixadora, “apesar da guerra total” em curso, as necessidades imediatas para a reconstrução na Ucrânia estão estimadas em 14 mil milhões de dólares [12,7 mil milhões de euros] e o processo “já está em andamento” com fundos provenientes de valores confiscados aos russos, orçamento ucraniano e doadores.
Embaixada atenta a presença de elementos pró-russos em associações ucranianas
A embaixadora da Ucrânia em Lisboa afirmou que está atenta à possível existência de elementos pró-russos em associações ucranianas em Portugal e que o Governo português partilha essa preocupação, apesar de limitações legislativas.
Maryna Mykhailenko afirmou à agência Lusa que é muito importante que as associações da sua comunidade em Portugal sejam registadas no Alto Comissariado para as Migrações e que este “deveria incluir apenas organizações pró-ucranianas e não pró-russas”, num contexto em que o seu país se encontra invadido pelas forças de Moscovo desde 24 de fevereiro do ano passado.
A diplomata não tem indicação de haver associações ucranianas com infiltrações russas, numa referência à polémica que aconteceu no ano passado em Setúbal, quando foi revelado, em plena crise de refugiados, que a organização Edintsvo – Associação dos Imigrantes dos Países de Leste, classificada como ucraniana, era liderada por um casal com ligações ao Kremlin, sendo que a mulher era funcionária do município.
Maryna Mykhailenko disse ter sido informada deste caso pela sua antecessora e que consultou a lista das associações ucranianas em Portugal e chamou-lhe a atenção que uma delas tem designação em língua russa.
Discutimos esta questão com as autoridades [portuguesas] e elas compreendem o problema, mas a questão é muito complicada porque têm a sua própria legislação sobre o assunto”, indicou a diplomata.
A embaixadora revelou que tratou do assunto diretamente com a secretária de Estado das Migrações, que, prosseguiu, apontou limitações legislativas em que, se a maioria ou 50% dos membros de associação têm passaportes da Ucrânia, essa organização pode ser registada como ucraniana.
“O que vi durante as minhas primeiras semanas [em Lisboa] é que as autoridades estão prontas para resolver esse problema”, acrescentou a diplomata na entrevista à Lusa, que decorreu na Embaixada da Ucrânia, vizinha, de um lado, da representação turca, e, do outro, a residência do embaixador russo e um pouco mais abaixo as instalações da Polónia, na pacata Avenida das Descobertas em Lisboa.
Portugal recebeu cerca de 59 mil refugiados ucranianos desde que foi iniciada a invasão russa, a juntar à primeira vaga migratória nos anos 1990, e a representante da Ucrânia manifestou a sua gratidão às autoridades de Lisboa, “porque é um número enorme para o país”, descrevendo que este é igualmente um assunto em cima da mesa nos seus diálogos com a tutela dos assuntos sociais.
Segundo Maryna Mykhailenko, “não há nenhum grande problema com as pessoas temporariamente deslocadas”, que “são bem-vindas em Portugal” e, desde o início da guerra, a maioria já tem emprego para sustentar as suas famílias, acreditando, porém, que pretendam voltar ao país de origem quando o conflito terminar, atendendo a previsões globais de que quatro milhões dos cerca de 6,5 de milhões refugiados têm planos de regresso.
Na entrevista à Lusa, a diplomata deu a entender que as ligações entre as comunidades dos dois países beligerantes em Portugal são praticamente inexistentes, apontando números de uma sondagem realizada na Ucrânia pela organização de pesquisa não-governamental independente ucraniana Rating Group, citada no final de junho pela agência Interfax, de que “90% dos ucranianos não estão prontos para interagir com os cidadãos russos”.
“Não é a primeira guerra com a Rússia, é a guerra importante, e é claro que devemos ganhá-la com o apoio dos nossos parceiros internacionais, porque estamos a lutar pela Ucrânia europeia, a lutar pelos valores e princípios europeus, e estamos a lutar pela nossa integridade territorial e pelas nossas fronteiras reconhecidas internacionalmente”, afirmou a embaixadora, enfatizando: “Estamos a lutar até pelo nosso direito de existir”.
Maryna Mykhailenko citou mais dados de sondagens que indicam que 84% dos ucranianos opõem-se à concessão de território à Rússia, mesmo perante o risco de prolongar a guerra em curso.
O nosso povo está pronto a sofrer e em constantes mudanças, mas não está disposto para qualquer concessão territorial”, comentou, adicionando que a maioria dos ucranianos tem familiares ou amigos feridos ou mortos devido à agressão de Moscovo, ou seja 78% dos inquiridos em todo o país controlado pelas forças da Rússia, tornando “claro o motivo pelo qual a propaganda russa sobre a história e cultura comuns não tem efeito na atual emoção dos ucranianos, que é contra Moscovo há muito tempo”.
Ucrânia reforça aproximações a países africanos
A Ucrânia pretende aumentar a sua presença no continente africano e na América Latina e revigorar a sua estratégia no chamado “sul global”, contando para esse processo com a experiência de Portugal em geografias onde mantém laços históricos.
Na mesma entrevista à Lusa, Maryna Mykhailenko referiu-se a “uma nova estratégia para África e para a América Latina”, onde a perceção das consequências da invasão russa da Ucrânia, em 24 de fevereiro do ano passado, mantém diferenças substanciais em relação aos parceiros ocidentais.
No âmbito dessa estratégia, segundo a diplomata, já foi decidida a criação de novas representações diplomáticas em África, incluindo em países lusófonos, embora sem especificar quais, e na América Latina, onde foi aberta uma embaixada no Brasil.
Para este processo, a Ucrânia conta com o apoio de Portugal, de resto já disponibilizado pelo chefe da diplomacia portuguesa, João Gomes Cravinho.
“Portugal tem relações muito duradouras e amistosas com o chamado ‘sul global’, em particular com alguns dos países africanos e com Brasil, portanto, e essa questão foi discutida durante a última reunião entre os nossos ministros [dos Negócios Estrangeiros], o vosso lado [português] confirmou que pode assistir-nos para revigorar essa cooperação”, declarou a embaixadora.
O apoio pode, de acordo com a representante ucraniana, manifestar-se na troca de opiniões, de informação sobre a cooperação de Lisboa e Kiev com aqueles países e ajuda na elaboração de novas estratégias.
A vossa experiência, é muito, muito importante para nós e muito útil para entendermos melhor a situação lá [África e América Latina]”, destacou.
A Rússia, por sua vez, também mantém ligações históricas e uma antiga capacidade de influência nestas regiões, sobretudo em vários países africanos, e Kiev tem consciência da dificuldade desta estratégia: “Entendemos isso, vamos tratar disso e seremos bem-sucedidos”, confiou.
A guerra na Ucrânia dura já há mais de 16 meses e a resistência de Kiev tem sido amplamente apoiada pelos aliados ocidentais da NATO e da União Europeia (UE), o que Maryna Mykhailenko espera que se mantenha até ao triunfo das forças de Kiev, apesar dos custos globais associados ao conflito, na forma da desaceleração económica, subida das taxas de juro e insegurança alimentar.
“Quando se falar do custo económico […), apenas posso citar o secretário-geral da NATO, senhor [Jens] Stoltenberg, quando disse que o preço desta guerra para a comunidade internacional é medido em dinheiro e o preço para os ucranianos é medido em sangue”, comentou a embaixadora, expressando a sua gratidão aos líderes da Aliança Atlântica e da NATO, que “confirmaram o seu apoio enquanto for necessário”, uma promessa de que não tem motivo para duvidar.
Este é um dos assuntos centrais da próxima cimeira da NATO, a decorrer em 11 e 12 de julho em Vilnius, na Litania, na qual já foi confirmada a recondução da liderança de Stoltenberg por um ano, após dois mandatos consecutivos desde 2014, e que é apoiada por Kiev, por se tratar de “um grande amigo” da Ucrânia.
Outro tema nuclear da cimeira é o processo de adesão da Ucrânia à NATO, um desejo assumido por Kiev desde a invasão russa ao fim de três décadas de neutralidade, que espera que de Vílnius resulte um convite da Aliança, o que constituiria “um forte sinal político”.
Apesar do reconhecimento realista de que a Ucrânia não pode aderir à Aliança em plena guerra, a embaixadora apontou que Kiev “já não precisa de um plano de ação como membro”, atendendo a que executa um programa nacional desde 2009, abrangendo 574 tarefas, e às suas capacidades militares “significativamente aumentadas”, num exército que descreveu como forte e que já usa armamento ocidental contra a agressão russa. “Mas devemos entender o caminho e o algoritmo, e como e quando” acontecerá a integração na NATO.
Já sobre a adesão à UE, Maryna Mykhailenko, 49 anos, que desempenhou diversos cargos relacionados com política europeia no Ministério dos Negócios Estrangeiros, sublinhou o esforço de Kiev em acatar as recomendações de Bruxelas, das quais, segundo o último relatório disponível, várias já foram concretizadas e outras tiveram progressos.
A diplomata espera que no outono a Comissão Europeia avalie positivamente a Ucrânia e recomende ao Conselho o início das negociações de adesão, neste novo processo de alargamento da UE, que abrange outros países da região como a Moldova ou a Geórgia, apesar de neste último caso haver sinais de retrocessos democráticos, apontando a situação do ex-Presidente georgiano Mikheil Saakashvili, também cidadão ucraniano, em julgamento em Tbilissi, onde é acusado por corrupção e abuso de poder.
É uma decisão deles se querem ou não aderir [à UE]. E claro que gostaríamos que o senhor Saakashvili fosse libertado devido à sua difícil condição de saúde”, observou.
A Ucrânia, assegura a diplomata, “é um país europeu e tem profundas raízes europeias”, que não pede nenhuma exceção nos rigorosos critérios de Bruxelas, mesmo em contexto de guerra, apenas que se dê início ao processo de negociação.
A propósito da situação no terreno, a diplomata mostrou preocupação com os acontecimentos que envolvem a central nuclear de Zaporijia, sul da Ucrânia, na posse das forças russas desde março do ano passado, descrevendo a situação como “muito séria”, e alertando os parceiros de Kiev que devem atuar no sentido de evitar uma catástrofe, como aconteceu barragem de Kakhovka, no rio Dnieper, provocando um desastre ecológico e o deslocamento de milhares de pessoas.
Nas palavras da embaixadora, tratou-se de “uma loucura” dos russos, que pode ser replicada em Zaporijia, a maior central nuclear da Europa.
Sobre uma possível solução para o conflito Maryna Mykhailenko reitera que “não há outra opção” além da retirada das tropas russas da Ucrânia, restabelecimento da integridade territorial com as suas fronteiras reconhecidas internacionalmente, prestação de contas dos “responsáveis por esta guerra injustificada e não provocada” e iniciar a reconstrução do país. Por fim, “todas os ucranianos capturados, incluindo crianças, devem ser libertados e voltar para casa”.