Não estava predestinado a ser poeta. Não vinha de “boas famílias”, não tinha pedigree, não tinha deus, nem uma educação refinada. Não tinha uma casa a que pudesse chamar lar. Filho de um homem que o brutalizava, que o queria ourives, que, mal suspeitou da homossexualidade do filho tratou de nunca lhe esconder a força do desprezo e que, num acesso de fúria vingativa lhe atirou o amado piano pela janela. No dia 9 de agosto de 1923, antes mesmo de nascer a Ditadura, nasceu aquele que, durante décadas foi apelidado de “degenerado”, “aberração”, “paneleiro” mas nunca de “poeta”, de “pintor”, de “artista”. Mário Cesariny de Vasconcelos, de que esta quarta-feira se celebra o centenário com muita pompa, circunstância e aclamações várias, foi, não o esqueçamos, um homem que Portugal condenou a não existir. E, se estamos aqui hoje a exaltar o seu nome foi, antes mais, porque ele nunca calou o seu grito, nunca escondeu as garras e nunca se deixou esmagar pela dureza das suas circunstâncias e a todas elas se atirou como uma fera, fazendo da experiência da carne o trampolim para a beleza do verso. Fazendo de cada humilhação, de cada escarro que lhe atiravam à cara, de cada porta fechada, de todos os olhos que o evitavam umas das mais visionárias manifestações poéticas do século XX português.

A força da sua obra poética, antóloga, plástica emerge, também, como uma urgência em resistir a todas as violências de que foi alvo, a saber: viver numa sociedade que lhe negava o direito de cumprir as suas potencialidades como artista e como homem, que ignorava e silenciava a sua poesia e a sua pintura, que o tentou sempre arrumar como “um surrealista desvairado”, logo um homem pouco credível, um meio literário que tinha apoplexias com os seus ataques à tradição lírica portuguesa, desde logo ao intocável Fernando Pessoa. Um país que lhe negou salas para expor as suas obras, que se recusou a ver o que havia de absolutamente novo na sua poesia feita de coisas velhas, ecoando tradições perdidas, bebendo sangue, veneno e melancolia de autores malditos, herméticos, loucos, esquecidos, pirateando todas as rotas literárias, aterrorizando todos os que se sentavam confortavelmente nas convenções e no poder que elas concedem. Que o obrigou a apresentações semanais na polícia para confirmar que não andava com rapazes e que Portugal era um país de gente séria e ele uma exceção, um vírus de que era preciso guardar distância. Durante décadas, até à sua reabilitação já em plena Democracia, muito devido à ajuda de Mário Soares, muitos foram os que evitavam ser vistos em público na sua companhia, e aqueles que com ele deambulavam pelos cafés e Lisboa não escapavam a ser tomados por “surrealistas e maricas”. Mas estes, os que admiravam ou adulavam, pertenciam à mesma legião de proscritos, de solitários como Natália Correia, Luiz Pacheco, cujas obras que nos deixaram estão intrinsecamente ligadas a essa revolução chamada Mário Cesariny.

© Lusa

“Homem aclamado, homem aprisionado”, escreveu o filósofo italiano Guido Ceronetti, ele próprio um perseguidor de curiosidades libertinas e devorador de fantasmas. Não deixa pois de ser curioso como, neste tempo em que tudo se transforma em mercadoria, também o luto se transforma num evento mundano onde as pessoas, que se dizem cosmopolitas e liberais, tentam fazer dos homens malditos um animal de estimação com um guiso ao pescoço, para melhor os fazerem render. Hoje os jornais enchem-se com o nome Mário Cesariny, há livros, exposições,  conferências, versos estafados a correr nas redes sociais. Sim, faria 100 anos, esse que escolheu a mais profunda solidão para melhor amar os homens, esse que untava com veneno as palavras e depois as mandava acertar nas vaidades, nos figurões, nas celebridades, nos que não amavam loucamente, nos que vinham escrever sonetos sem nunca terem “perdido todos os elétricos” porque havia “o perigo de um grito lindíssimo” nas casas de banho públicas, e uma beleza atroz  nos corpos dos marinheiros, no dorso dos gatos, nas salas de filmes pornográficos em Paris, nos quadros de Vieira da Silva, em Sade, Rimbaud, Dante, Novalis, Teixeira de Pascoaes. Nunca se deu bem com aclamações e mesmo quando foi ele o aclamado nunca ficou muito tempo a assistir porque aí “ninguém se ouve e, sobretudo, não se ouve ninguém”.

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Ora, se houve algo em que Cesariny foi mestre foi em ouvir, as notas musicais, as palavras, o rumor dos versos; da poesia trovadoresca à linguagem destruída de Artaud, o caudal dos grandes rios e discretos afluentes que fez convergir para as suas antologias. Primeiro foi o fascínio pelo Neorealismo na figura de Lopes Graça. Mas é sempre preciso despirmo-nos de verdades, como o Príncipe Epaminondas e, Cesariny nunca se negou a despir uma verdade que não acolhesse o caos do mundo, a convivência quotidiana com o sonho, o invisível. O seu futuro foi sempre feito de passados, de “húmus e ferro-velho” como notou a ensaísta Emília Pinto de Almeida. É porque acredita que a o mundo não evolui, apenas se justapõe, que ele vai encontrar no Surrealismo o lugar onde a memória universal das imagens de Lascaux se junta às máquinas infernais da Modernidade. A intervenção surrealista é, para ele, restaurar a condição palimpsestica da arte em geral e da poesia em particular. O Surrealismo, na sua capacidade  “de acolher o grande e o pequeno, o belo e o feio, o erudito e o popular, tudo reabilitando. Colagem de vivos pegados aos mortos, capaz de iluminar o fundo humano de todos os séculos” foi aquilo que mais serviu ao pensamento múltiplo onde viviam aglomerados verbais e imagéticos que se baralhavam, reordenavam, se ligavam, se misturavam. “Rejeitando a posição de privilégio do autor, ele fez-se, antes de mais leitor, receptor, interceptor”, escreve ainda a ensaísta, com vasto trabalho desenvolvido sobre a obra do poeta e pintor.

“Há o perigo de um grito lindíssimo
quando andas assim comigo no invisível

Quando a manhã vier sairás comigo
para o espaço que nos falta para o amor
que nos falta

Porque tu não tens nome existes

A minha boca
sabe à tua boca

A minha boca
perdeu a memória
não pode falar as palavras
entram no seu túnel
e não é preciso segui-las.”

[Mário Cesariny]

Fundou dois grupos surrealistas, publicou vários livros de poesia, de ensaios, fez antologias poéticas que foram gritos de guerra e gargalhadas de festa. “Sabia tudo e era um menino”, recorda-o Mário Guerra,  da livraria Poesia Incompleta a quem um dia Cesariny quis “desposar”. Como homem e como poeta ou como “máquina de passar vidro colorido”, pregando um trânsito amoroso entre corpos e objetos, buscando uma liberdade livre das imagens errantes, indisciplinadoras, aberrantes, insuportáveis para nelas viver a liberdade que lhe faltava e a dignidade que lhe negavam.

Também António Cândido Franco, académico, biógrafo de Cesariny e uma das pessoas que mais tem estudado o movimento Surrealista português, sublinha a potência destruidora que o poeta injetou na “tradição lírica portuguesa, que é como as Histórias da literatura a designaram e continuam a designar e é apenas um outro modo de dizer que a poesia é apenas estética – canto inofensivo e solipsista. Ora para Cesariny a poesia tinha uma componente social e societal, de tipo satírico, que fazia dela uma ação subversiva. Vejam-se os poemas de “Nicolau Cansado Escritor” e depois os dedicados aos pessoanos e a Fernando Pessoa no Virgem Negra. Embora despeçam lume, são poemas crus, que castigam e ferem. Fazem parte de uma tradição satirizante do meio social envolvente, sem a qual a poesia se desvirtua e enfraquece. Cesariny faz parte de uma tradição pirata da poesia portuguesa que desfraldou a bandeira negra e assolou os mares da literatura e da sociedade não dando descanso aos galeões dos poderes oficiais e das hierarquias verticais”.

O anjo diabólico da poesia portuguesa

Celebrar hoje a furiosa vontade de desregrar de Mário Cesariny, homenagear a sua escrita como rejeição e luta contra um mundo que lhe negava o direito a existir, como negava toda a arte que implicava abertamente as ligações, os corpos, a sexualidade, a liberdade, que vigiava e punia todo o pensamento excêntrico aos cânones, à tradição, toda a arte que não fosse uma repetição do já visto, é uma tarefa condenada a ser apenas mais uma tentativa de domesticar um homem que já provou que não está para isso. Se a Fundação Cupertino de Miranda, onde está o espólio do poeta, decidiu homenageá-lo com uma exposição intitulada “Em todas as Ruas te Encontro”, um verso que de tão repetido, partilhado, já é só uma espécie de slogan publicitário. Se os museus se apressaram a chamar “obras de arte” àquilo que Cesariny via como uma outra forma de poesia e que Cândido Franco diz serem gestos de uma rebelião incendiária e intransigente, perguntamos: que Mário Cesariny é esse que se presta a ser pendurado em museus? Que Mario Cesariny é esse que desfila mundano, como se não tivesse sido um homem que escolheu viver radicalmente a sua solidão, num modesto apartamento na rua Basílio Teles, que partilhava com a irmã Henriette, que vestia roupa velha, e quando o convidavam para festas ele enviava um gato de louça vestido de marinheiro? Onde está o homem sarcástico, venenoso, que praticou com gáudio a crítica, a sátira, que era tão violentamente exigente consigo mesmo e com os outros, um homem que não fez cedências, que não se enganou a si mesmo nem aos outros?

O “anjo diabólico” da poesia portuguesa. © Fundação Cupertino de Miranda

Para António Cândido Franco, “as instituições – visíveis, invisíveis, oficiais, privadas, pequenas, grandes – são mecanismos pesados, estruturas metálicas, cuja respiração não convém à desenvoltura orgânica dos poetas e dos criadores. As rodas dentadas da burocracia e da lógica fatal das contas, que são o maquinismo que as faz girar, acabam por mastigar, triturar e aniquilar a força vital e orgânica da poesia e da criação. Isto não quer dizer que o centenário de nascimento de Mário Cesariny não deva ser lembrado e festejado. Quer dizer apenas que deve pertencer aos poetas e aos criadores a iniciativa dos atos do centenário. Se um único bicho poeta se chegar à frente para lembrar Cesariny é bem possível que o centenário não seja (só) domesticação, mas sim processo de continuação e alargamento.”

Já Mário Guerra prefere explicar Cesariny às criancinhas naturais e estrangeiras lembrando o dia em que o poeta e o artista plástico Mário Alberto foram convidados por João Soares, na altura presidente da Câmara de Lisboa, para irem assistir à inauguração de uns painéis evocativos de Camões. “Mesmo gostando de João Soares, o Cesariny começou a gritar para o meu pai: Ó Mário, Ó Mário vamos buscar um martelo e partir isto tudo. Ora hoje não imaginamos uma Joana Vasconcelos a armar um escândalo destes. Criou-se uma ideia tonta de que o artista tem uma obrigação pessoal com a bondade. Mas a poesia não gosta de suavidades, a poesia não é ir ver koalas ao jardim zoológico. E a geração do Cesariny foi talvez a última que cultivava uma crítica feroz, cujos embates eram a sério, mas onde se sabia separar a crítica à obra da crítica à pessoa. Continuo a achar que a única forma de celebrar Mário Cesariny é lê-lo, lê-lo muitas vezes e não só uns versinhos no facebook. E, quando o forem citar, citem por exemplo isto: “todos sem exceção têm a máxima culpa””.

Se cada época tem as suas formas de visibilidade e de enunciação, cabe aos que procuram pensar de forma múltipla e não obediente aos modelos fornecidos pelos diferentes poderes, modelos prontos a usar, problematizarem essas mesmas formas de ver e de comunicar no sentido da construção de novas formas de subjetividade. Ora se há alguém que rapidamente percebeu as intimas relações entre a visibilidade e o poder, a palavra e o poder foi Mário Cesariny e a sua poesia está cheia dessas marcas, dessas feridas que o poder inflige às palavras e às imagens. Também por isso a quando entramos na sua obra poética estamos sempre a ser confrontados com uma crítica contundente aos regimes de visibilidade e enunciação, o que pode ser dito, o que pode ser visto, até porque o seu objetivo nunca foi tanto saber quem somos mas refutar radicalmente o que nós somos. Por isso, Mário Cesariny se mantém, intransigente, difícil, escorregadio, selvagem. Um homem exemplar, que, como diz o tradutor, poeta e professor universitário, Miguel Filipe Mochila, “deixou uma obra onde ele cria uma comunidade, com as suas colagens, traduções, livros de comentários a livros, antologias. O que é curioso vindo de alguém que se prestou a viver numa solidão radical. Ele, por estar tão sozinho, falamos nesses anos da ditadura, sentiu necessidade de reunir um exercito de gente com quem tinhas coisas em comum, gente de outras épocas, de outras culturas. Muitos desses autores eram desconhecidos em Portugal e Cesariny juntou-os também para os deixar aos que viessem a seguir”.

Apesar de se ter tornado um poeta que reúne um certo consenso, Cesariny não tem uma corte de imitadores, candidatos a herdeiros como têm, por exemplo Herberto Helder ou Ruy Belo, talvez porque a poesia de Cesariny ande sempre a par com uma atitude de guerrilha, uma vontade de incendiar, e um sentido crítico feroz de quem vive à flor da pele. Talvez porque para isto se pague um preço demasiado alto, como ele pagou. Diogo Vaz Pinto, poeta e editor assume frontalmente que considera “Mário Cesariny muito superior a Fernando Pessoa”, coisa que parece uma heresia de tal forma Pessoa se tornou ditatorialmente consensual que a mera problematização do seu lugar soa como uma aberração. Olhando para este centenário, Vaz Pinto lamenta que “não existam mais aproximações críticas à obra de Cesariny” que permitam perceber como, na atualidade, ele é um poeta que nos fala muito mais do que Fernando Pessoa, “porque, ao contrário deste, que era tudo uma construção mental, o Cesariny escreveu a partir das experiências mais radicais do corpo, e só a verdadeira experiência provoca em ti um desabrochar em relação a lugares que não podem ser imaginados, porque a imaginação não vai a todo o lado. Há elementos da vida, coisas que nos acontecem que são absolutamente constitutivas da poesia que se escreve. Para ele a poesia servia-lhe para criar uma liberdade face à clausura da sua realidade. Ele escreve para dizer ‘eu tenho direito a existir’. As imagens poéticas que criou são o grito de alguém que exige o seu direito a existir e isso dá-lhe uma força tal, uma força que falta aos poetas de hoje”.

Programa do centenário

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EXPOSIÇÕES

  • “Como a estrada começa” (Fundação Cupertino de Miranda, Famalicão)
  • “Primeira Pessoa” (Casa da Liberdade, Lisboa) “… e os seus contemporâneos” (Galeria Perve, Lisboa)
  • “O Castelo Surrealista” (MAAT, Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia, Lisboa, a partir de outubro)

LIVROS A SAIR

  • Fotografias de Mário Cesariny – Livro de Fotografia da autoria de Nuno Félix da Costa e editada pela Documenta e Fundação Cupertino de Miranda
  • Antologia de poesia de Mário Cesariny – Organizada pelo ensaísta Fernando Cabral Martins e editada pela Assírio & Alvim
  • Cartas de Cesariny a Antonio Tabucchi – Com organização de Fernando Cabral Martins, textos de Antonio Tabucchi, traduzidos por Jacinto Lucas Pires, e uma entrevista com Mário Cesariny. Editada pela Documenta e Fundação Cupertino de Miranda
  • Mário Cesariny, Devoir de Parole – Antologia de poesia de Mário Cesariny traduzida para francês, bilingue, com tradução de Bernardo Haumonte e prefácio de Emília de Almeida. O lançamento adia 19 de Novembro, no Théâtre de La Ville, em Paris,
  • Poetas do Amor, Da Revolta e da Naúsea – Um projeto de Mário Cesariny para divulgar a poesia portuguesa em teatro ou televisão, preparado entre 1974 e 1977 e nunca concretizado. Pela editora Assírio & Alvim

MÚSICA

  • O Homem Em Eclipse (concerto e lançamento de um álbum) – Projeto Os Poetas, concebido por Rodrigo Leão e Gabriel Gomes, com 5 músicos em palco, totalmente dedicado à poesia de Mário Cesariny.
    O concerto terá lugar no dia 26 de novembro na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão

Já Miguel Mochila destaca a “potência do risco” que há em poetas como Cesariny ou Natália Correia. Ele por ser homossexual, ela por ser uma mulher e uma mulher que não se comportava como as demais.” Os dois, que até foram amigos e cúmplices, fizeram escolhas nas suas vidas que os obrigou a terem uma grande dose de coragem, que depois se traduz na forma e no conteúdo transgressor da sua poesia.”

Celebrado este centenário será Mário Cesariny de Vasconcelos um poeta para as gerações de leitores do século XXI, ele que sempre rejeitou a ideia de futuro como progresso e sabia que a identidade é a primeira forma que os estados usam para subjugar os homens, que assim ficam rotulados, aprisionados? Poderá a nova geração, que só conhece o poeta pelos versinhos esfrangalhados do Poema Ensina a Cair, ler, de facto, Mário Cesariny ? Reconhecer a dívida que todos temos para com ele? Aprender com o seu exemplo? Para António Cândido Franco a resposta não é simples: “O século XXI parece ser o século da não poesia por excelência. Se quisermos uma encontrar uma imagem para o traduzir temos antes de mais as autoestradas da Inteligência Artificial (IA). A poesia andou de comboio no século XIX com Cesário, passou a andar de carro e de avião no século XX com Pessoa. Vai andar de teletransporte no século XXI com o ciborgue. A refeição de letras aquecida no micro-ondas vai ser aperfeiçoada até ao impensável do talento para entretenimento dos últimos humanos e dos primeiros híbridos transumanos. No tempo de Lucrécio e de Gil Vicente a poesia andava a pé, descalça e nua. A contracorrente, Cesariny tentou dinamitar as vias férreas e as autoestradas físicas e virtuais e enveredar de novo pela senda pedestre de uma poesia primitiva, arcaica, mágica, que se comia crua, sem estar cozinhada nem condimentada, em cima da pele de um bode. Foi na embriaguez primacial do vinho e do sangue que a poesia nasceu e foi aí que Cesariny a quis.”

Talvez a única forma de homenagear um poeta, qualquer poeta, seja ler a sua obra ou então rir dela, rir dele, num “riso admirável de quem sabe e gosta”, como o fez Alexandre O’Neill, sem remorsos e sem vergonha:

Louvor e Simplificação de Mário Cesariny de Vasconcelos
Sobreviveste, Mário (como assim!) de Vasconcelos,
aos grilos da paróquia.
Entre os blocos de prédios cada vez mais enevoados,
conténs os teus sapatos, como outrora.

Não houve pão-de-ló, nem malvasia,
naquele piquenique no Rossio.
Houve um anão.

(Os burros da Malveira
ficaram retidos na fronteira.)

E o anão, que era um trotador,
fez questão de saltar-te para o ombro.
Com a voz grilada pôs-se a gritar «É a Hora!»
Oh, Mário, e tu mandaste-o embora!

Murmurações, cricris acompanharam
o teu gesto nada paternal.
Finalmente os burros liberaram.
Num chouto desesperado aqui chegaram
e estão a comer o teu bornal.

Mário, faz mal?