Ainda os grelos estavam no troley e já me cheirava a azedo. Na boca, confirmou-se a desconfiança: “Esta comida está doente”, alertei a minha amiga.
Antes já tínhamos experimentado uma canja falecida, só arroz e fiapos de galináceo encortiçado; alcachofras camufladas em tiras de bacon de buffet de hotel de 2 estrelas, com banho de aguadilha láctea e alimonada; no couvert vinha um bôla de enchidos sequinha e esfarelenta; bolinhos de bacalhau e de carne ressequidos, escassos de um e do outro; e um patê de “cogumelos, legumes, gengibre e ervas aromáticas” — info do empregado — que está entre as piores nanhas para barrar no pão alguma vez servidas sobre uma toalha de pano.
A tragédia continuaria até ao fim, atingindo o pico na última etapa do almoço. Chegados à sobremesa, esperávamos a redenção com o famoso crepe Suzette, botija de oxigénio de anos para este Portucale, garante de publicidade nos jornais e na TV. Sucede que o empregado trouxe o trolley e começou a vender sopas douradas, tartes disto e daquilo.
“Então e o crepe Suzette?”, perguntei. Que havia, que havia. “Há sempre”, atirou o homem, desconcertante.
Contrapus: “Mas é só ao jantar, é isso?”
Ele: “Ao almoço e ao jantar”, insistiu, logo acrescentando, perante o meu sobrolho carregado: “Mas tem de pedir logo no início, que o chef já se foi embora”.
Eram 14h33, para muita gente uma boa hora para se pedir uma sobremesa num restaurante. Mas não no 14º piso do edifício do hotel Miradouro, onde este Portucale reside desde 1969, no Porto. Aí, o crepe Suzette só acontece entre as 13.00 e as 13.30, e se o vento estiver de Leste, e se o cozinheiro estiver acordado.
A negação do crepe Suzette foi como uma declaração de morte, como o último suspiro de uma cozinha que marcou a cidade. Porque é disso que se trata: o Portucale está a morrer e ninguém avisou. Continua lindo como quando conquistou uma estrela Michelin, em 1974, os empregados sorridentes e cavalheiros, só pouco mais velhos do que os talheres de prata da Cristofle, contando as mesmas histórias de sempre — houve clientes já quiseram pagar 38 mil euros pelo carrinho de sala, que os cabos das facas são de marfim. Mas a cozinha transformou-se numa piada de mau gosto.
E a culpa é certamente dos sócios, descendentes do fundador e venerado Ernesto Azevedo, mas também é dos clientes. É nossa. É sobretudo dos que escrevem sobre restaurantes — e sempre preferiram reportar o folclore e a memorabilia e bajular sem critério e sem pagar a conta a falar do que estava no prato. A culpa é do crepe Suzette, do trolley da sala e da nossa ignorância.
Eu sei que dói. O Portucale é um sítio especial e está bem preservado. Alguém ali, pelo menos, tem mantido o bom senso de não fazer remodelações pós-modernas — e isso é de valor. As cadeiras e os móveis em madeiras exóticas africanas são as mesmas desde há 50 anos, as mesas idem, os mesmos estores de correr e a caixilharia de alumínio; o mesmo feiticeiro para limpar as mesas — essa máquina maravilhosa (já colada a fita cola) que sorve as migalhas da toalha de pano branco; a tapeçaria de Camarinha, ao fundo, é a mesma; é a mesma a vista ampla do Porto, de Campanhã até à Foz.
Mas o charme elegante da decadência não tem de ser uma carpete cheia de nódoas, nem comida pré-feita.
E o problema não é o chateaubriand ser cozinha francesa do tempo do De Gaulle com arroz amarelo açafronado de showcooking de hipermercado. O problema é o chateaubriand ser uma bosta cozida por fora e crua por dentro. Nem vem grande mal termos de levar com dardos de curgete e os mesmos grelos salteados a acompanhar o bacalhau à Marinheiro e o chateaubriand.
O problema é a curgete ser cozida e os grelos salteados já estarem a fermentar. O problema é as alcachofras estarem esbardalhadas como cebolas sobrecozidas. O problema é os mexilhões parecerem duas gomas com sabor a nada, como botões de punho de pechisbeque numa Victor Emmanuel.
O homem que fundou o Portucale merece outro respeito. Ernesto Azevedo envergonhar-se-ia com esta refeição. E o mesmo dizer da Cooperativa dos Pedreiros, ainda dono do edifício, que burilou o prédio como uma jóia, cheia de recantos e azulejos loucos, à medida do projeto (em ácidos?) dos arquitetos Maria José Marques da Silva e de David Moreira da Silva.
Vale muito a pena ir ao edifício Miradouro. Dormir nos seus quartos charmosos. Subir ao bar, no último piso, mesmo ao lado do restaurante. Lamentavelmente, neste momento, vale tudo ali. Menos gastar 60 euros a comer.
Ex-jogador de ténis, Tomás Cruges foi também inspetor para a área alimentar. Hoje em dia, dedica-se a um doutoramento sobre a influência gastronómica do Califado de Córdoba. Nos tempos livres, faz a revisão de livros de culinária para uma grande editora.