Ötzi, a mais famosa múmia humana encontrada no gelo, continua a surpreender os cientistas. Um estudo detalhado do seu genoma indica que teria pele mais escura do que os europeus dos dias de hoje, poucas sardas, um cabelo pouco encaracolado e até sofreria de calvície. Os resultados foram publicados na revista científica Cell Genomics.

Os investigadores justificam a descoberta com o que é possível encontrar no cadáver mais estudado do mundo. A pele de Ötzi é escura, o que podia, claro, dever-se ao processo de mumificação pelo gelo, mas uma análise dos tecidos também encontrou grânulos de melanina, cuja principal função é a pigmentação. Em relação à calvície, os genes indicam um fator de risco para sofrer dessa condição e, de facto, a múmia bem preservada quase não apresentava vestígios de cabelo (apesar da farta cabeleira que tem a sua reconstituição no Museu de Arqueologia de Tirol do Sul).

A reconstituição Ötzi, o homem do gelo, apresenta-o com pele clara e muito cabelo. Agora, os genes dizem o contrário — Andrea Solero/AFP/Getty Images

O homem do gelo viveu na Idade do Cobre (calcolítico) e foi morto nos Alpes, na atual região do Tirol do Sul (Itália), depois de atingido por uma seta no ombro esquerdo que lhe perfurou uma artéria. Ficou preso no gelo glaciar com os seus pertences cerca de 3.120 a 3.350 anos antes de Cristo e só foi descoberto em 1991, por acaso, por um casal de esquiadores.

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O corpo mumificado do homem, que teria cerca de 45 anos, ficou tão bem preservado que tem permitido saber mais sobre como viveu e morreu e como seria a sua constituição física — até foi possível identificar as suas 61 tatuagens. Em 2012, o seu genoma foi completamente sequenciado, ou seja, o material genético contido no osso ilíaco esquerdo foi analisado e mapeado. Agora, a equipa de Ke Wang, investigador na Universidade Fudan de Shanghai (China) e no Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva (Alemanha), voltou a analisar o genoma de Ötzi com métodos mais modernos e precisos.

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Depois da análise de 2012, a equipa de Andreas Keller, da Universidade Saarland (Alemanha), encontrou uma afinidade genética entre o Ötzi e a população atual da Sardenha, conforme publicaram na revista científica Nature. Mas isso foi antes de se conhecerem os genomas de outros indivíduos euroasiáticos que viveram há cinco ou seis mil anos, escreve agora a equipa de Ke Wang.

Os dados genómicos de indivíduos europeus [que viveram] 3.000 a 4.000 anos antes de Cristo, que considerámos serem populações contemporâneas ao homem do gelo, mostraram que a semelhança genética entre o homem do gelo e os sardenhos atuais se deve a componentes genéticas comuns que foram geograficamente espalhados por toda a Europa durante o período neolítico [Idade da Pedra, antes da Idade do Cobre]”, escrevem os autores no artigo da Cell Genomics.

A equipa multinacional destaca ainda que a leitura atual do genoma estava menos contaminada com ADN moderno do que a sequenciação feita há mais de 10 anos — 0,5% de contaminação, 10 vezes menos do que tinha sido conseguido pela equipa anterior. Terá sido a contaminação na primeira análise que ditou que Ötzi estivesse relacionado com as populações que vieram das estepes euroasiáticas, mas agora essa ligação não foi encontrada. Na verdade, os agricultores das estepes só chegaram à Europa cerca de mil anos depois do homem do gelo tirolês.

A equipa de Wang verificou que cerca de 90% do genoma de Ötzi estava relacionado com os agricultores do neolítico — nomeadamente, de um humano desse período encontrado na Anatólia (Turquia) —; o resto seria de caçadores-recoletores ocidentais. A surpresa foi exatamente a proximidade genética aos primeiros agricultores do neolítico, que era maior do que a encontrada nas restantes populações europeias que viveram naquela altura.

Descobrimos que o homem do gelo, juntamente com outro indivíduo contemporâneo Italy_Broion_CA.SG encontrado no sul dos Alpes, têm a maior proporção de ancestralidade relacionada com os agricultores do neolítico entre todos os indivíduos europeus contemporâneos analisados até agora, sugerindo que esses indivíduos estavam relativamente isolados de outros indivíduos europeus, nos quais houve mais mistura genética com os antigos caçadores-recoletores europeus”, descrevem os autores.

Assim, há cerca de 9.000 anos, os agricultores do neolítico vindos da Anatólia ocuparam a Grécia e os Balcãs e espalharam-se pela Europa onde se foram reproduzindo com os caçadores-recoletores que por cá viviam. Há cerca de 6.000 anos, as populações europeias tinham um genoma que resultava da mistura destes dois grandes grupos — uma mistura que se mantém até aos dias de hoje. As exceções conhecidas até agora são dos dois indivíduos encontrados nos Alpes, que estariam suficientemente afastados das restantes grupos que povoavam a Europa. Já antes se havia descoberto que a bactéria Helicobacter pylori encontrada no estômago de Ötzi era mais próxima das estirpes asiáticas.

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A análise do genoma de Ötzi revela ainda que teria predisposição para a diabetes tipo II e obesidade, que não se terão chegado a manifestar graças devido à sua alimentação, refere a Smithsonian Magazine. E também teria uma predisposição genética para doenças cardiovasculares. “Isto é interessante, porque há muito tempo que se julga ser uma doença da civilização moderna. Parece que é algo que depende não só do estilo de vida, mas também da nossa composição genética”, diz Albert Zink, diretor do Instituto Eurac para o Estudo de Múmias em Bolzano (Itália) e co-autor do estudo.