Quando pensamos em Liv Ullman, a carreira que fez nos EUA estará no dossier de assuntos secundários. Mas talvez a lista de convidados de peso de Hollywood (Cate Blanchett, Jessica Chastain, John Lithgow e Jeremy Irons) tenha forçado Dheeraj Akolkar a dar tanta atenção no primeiro episódio a essa aventura e até a começar pela consagração aí, com o Óscar de carreira. “Liv Ullmann: Uma Estrada Menos Percorrida”, o documentário em três partes que está disponível na Filmin (e que passou pela última edição do Festival de Cannes) é um olhar transversal que tenta ir além da pessoa-atriz e, sobretudo, da relação profissional e pessoal com Ingmar Bergman.
Neste último tópico, isso explica-se fora de câmara, pela relação que existe entre Liv Ullman e o realizador Dheeraj Akolkar. O documentário de 2012 “Liv & Ingmar” abordou a relação de 42 anos e centrar este registo por aí seria redundante. Regressemos à América e ao Óscar honorário: o início justifica-se com a comparação a Greta Garbo. Depois de Greta, Ullman assumiu o papel de grande atriz nórdica no cinema americano.
A comparação situa Ullman face à audiência desprevenida e, em simultâneo, mostra um outro lado, o da indiferença perante o estrelato, por via da humildade e da ingenuidade. Talvez por isso a carreira da atriz em Hollywood não tenha corrido tão bem para a indústria quanto o esperado. Para a própria, esse desalinho em relação às expectativas parece apenas um detalhe, algo desajustado, sim, mas que lhe permitia voltar a casa e filmar com Ingmar Bergman.
[o trailer de “Liv Ullmann: Uma Estrada Menos Percorrida”:]
A comparação com Garbo atinge o limite numa história que Ullman conta, quando um dia, em Nova Iorque, a encontra na rua e começa a segui-la, para se apresentar, mostrar o seu respeito e dizer que estava lá, na América. Isto tudo acontece quando Liv está na Broadway como protagonista de “Anna Christie”, personagem que Greta interpretou no filme de 1930 de Frances Marion. Garbo sentiu que estava a ser seguida e foi acelerando o passo, Ullman fez o mesmo, Garbo acelerou ainda mais e assim a história continuou até se chegar à conclusão que Garbo nunca parou, não queria ser perturbada. Ullman percebeu e aceitou, como se nunca lhe tivesse interessado chegar lá, mas sim fazer o seu caminho.
Tímida — Ullman por vezes brinca dizendo que ninguém fala com ela nas festas no Festival de Cannes —, a artista que fala de si própria num documentário sobre a sua pessoa, parece sempre descrente do sucesso que alcançou, alheada dos seus talentos, das suas qualidades. O que lhe fica bem, porque permite que “Uma Estrada Menos Percorrida” saia do âmbito “atriz de Ingmar Bergman” e depressa a apresente como realizadora, argumentista, escritora, mulher, mãe que tem de lidar com o peso da ausência do pai na vida da filha, enquanto a própria também tem de trabalhar.
“Uma Estrada Menos Percorrida” desmaterializa, portanto, uma visão limitada que possa existir da norueguesa, enquanto atriz — e mulher — de Ingmar Bergman, que durante largos anos deu corpo a algumas das personagens mais icónicas da filmografia do cineasta, seja no díptico “Persona” e “A Hora do Lobo”, naquele filme de terror sem catarse — como tão bem Mia Hansen-Løve o descreve em “A Ilha de Bergman” — ou em “Cenas da Vida Conjugal” e no regresso a essa personagem, décadas depois, no derradeiro filme de Bergman, “Saraband”.
O documentário apresenta a pessoa Liv Ullman, artista da cabeça aos pés, com uma presença a tempo inteiro neste mundo. E intensifica uma ideia que existe dela, de pessoa tímida, mas que fala sem filtros sobre a sua vida por via da inocência e do à-vontade de quem não guarda segredos. De certeza que tem muitos só seus, mas é a narrativa que conta. E o documentário de Dheeraj Akolkar explora muito bem esse lado, da Liv Ullman que fez um caminho autónomo e que tem um trabalho com voz própria.