Depois de um final de verão aquecido pelo leilão dos impostos e pela crescente guerra — ainda que fria — com o Presidente da República, António Costa chegou à rentrée do PS preparado para fazer a defesa da honra da governação de um “otimista irritante” (o cognome que Marcelo Rebelo de Sousa um dia lhe atribuiu). E, mesmo com todas as cautelas e garantias sobre a sua dedicação ao objetivo das contas certas, aproveitou para arrancar o ano político com anúncios novos, neste caso acenando aos mais jovens com reduções de IRS e devoluções de propinas nos primeiros anos de trabalho.

Concretamente, haverá novidades no modelo do IRS Jovem, detalhou o primeiro-ministro: no primeiro ano, os jovens que entram no mercado de trabalho estarão isentos deste imposto; no segundo ano, só pagarão 25% do que teriam de pagar consoante o escalão em que se inserem; no terceiro e quarto anos, pagarão metade; e, no quinto ano, o valor será de 75% do total. “Não estou a propor nenhum mecanismo regressivo”, atirou Costa, de mira apontada ao PSD e à sua promessa de colocar o imposto no patamar dos 15% para todos os jovens.

Além disso, quem estudar na universidade pública (incluindo quem beneficia da Ação Social Escolar) receberá nos primeiros anos de trabalho em Portugal o equivalente líquido ao que pagou de propinas (697 euros por ano, até completar o valor total do curso). Para os mestrados a lógica será a mesma, mas com um valor máximo de 1500 euros, uma vez que o valor das propinas neste caso difere, explicou Costa. E o modelo dos passes de transporte imitará o que acontece em Lisboa, passando o passe para menores de 23 anos a ser gratuito.

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Costa submete-se à avaliação continua dos jovens

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O primeiro-ministro ainda guardava no bolso mais uns brindes para os mais novos: vão receber, no próximo ano, o prometido cheque livro “no dia a seguir a fazerem dezoito anos”; quem acabar a escolaridade obrigatória vai receber um passe de uma semana para gastar em pousadas de juventude; e também quatro bilhetes de comboio da CP para “poder conhecer a diversidade do nosso país”.

Tudo pensado para uma faixa de eleitorado que preocupa o PS — como Costa disse, os jovens de hoje não comparam os salários que recebem ao fim do mês com os da empresa ao lado, mas com os salários “da Alemanha ou da Holanda” — e junto da qual os socialistas estão conscientes que têm de trabalhar, uma vez que eleitoralmente se saem melhor junto dos pensionistas e dos mais idosos.

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A defesa das contas certas: “Não é questão de fé”

Fora os anúncios, Costa chegou a Évora preparado para cumprir dois objetivos: em primeiro lugar, explicar que a política das contas certas continua a ser o centro da sua ação governativa e que não porá em risco a “previsibilidade” e a “estabilidade” que prometeu aos portugueses que lhe deram a maioria absoluta — por muito que, mesmo dentro do PS, haja quem alerte para o perigo de a população não sentir no bolso os bons indicadores económicos que o Governo vai anunciando.

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Com a moldura dos jovens alunos da Academia Socialista atrás de si, Costa fez a sua apologia das “finanças públicas credibilizadas e sob controlo” explicando aos jovens que um dos deveres da sua geração passará por entregar às seguintes não só um “planeta de menor risco”, mas também “um país com finanças de menor risco”.

O foco nas contas certas, recorrentemente caracterizado pela oposição como uma “obsessão”, não é uma questão de “fé religiosa”, ironizou Costa; é uma questão de ter “liberdade para fazer escolhas políticas”. “Com a corda na garganta não sou livre”, atirou, desfiando exemplos, da compra de vacinas ao investimento na Educação, que não seriam possíveis se não tivesse havido superávite em 2019 e se Portugal não tivesse recuperado a sua credibilidade internacional, ainda mais importante em tempos de subida das taxas de juro.

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Tudo para responder ao PSD, que na sua própria rentrée fez o anúncio de uma redução de IRS que chegaria aos 1200 milhões de euros. “A política não pode ser um exercício de números mediáticos”, atirou Costa, defendendo a importância de se sair bem na governação de todos os dias, focada nas pessoas — “na avaliação contínua”, gracejou — e de “cumprir o contrato” que assinou com os portugueses que lhe deram a maioria absoluta.

Moral da história: cumprir esse contrato de forma “previsível” significará manter o objetivo de reduzir, no total, cerca de dois mil milhões de euros em IRS até 2027 — o mesmo valor que o Governo anunciara em abril, quando traçou o seu Plano de Estabilidade, sem valores revistos em baixa nem mais euforias. “Não precisamos de chegar aqui hoje a inventar nada”, disparou, lembrando as medidas que o PS já foi adotando para reduzir impostos, sobretudo o IRS.

A resposta também poderia ser dirigida a Marcelo Rebelo de Sousa, que tem pressionado publicamente o Governo a gastar a “folga” orçamental que tem acumulado. Mas nada feito. Estabilidade, previsibilidade, confiança: é este o mantra que Costa foi repetindo em vários pontos do longo discurso e que marcará o novo ano político.

A defesa da honra do “otimista irritante” que “leva pancada”

O segundo objetivo de Costa foi fazer em Évora uma espécie de defesa da honra da sua governação — fosse para responder à oposição, de forma mais evidente, ou possivelmente ao Presidente da República, de forma mais subtil. Desde logo, com uma referência às políticas de Habitação que têm levado a um braço de ferro público com Marcelo Rebelo de Sousa: “Não são contra ninguém, mas a favor das novas gerações e famílias (…) Que direito há em manter casas fechadas?”, perguntou, arrancando aplausos à sala cheia que o ouvia.

Mas a defesa de uma governação “resiliente” e sem “ansiedades” não ficou pela Habitação e percorreu setores variados: Costa lembrou a reforma das Unidades Locais de Saúde no SNS; as novas casas prometidas para tentar fazer frente à crise da Habitação, que não estão todas construídas, mas estão “a andar”; os pensionistas receberam o aumento intercalar das pensões e as famílias carenciadas foram apoiadas em tempos de inflação; o IVA zero mantém-se até dezembro e a medida para apoiar famílias com crédito à Habitação será, como Fernando Medina já tinha anunciado, corrigida e ampliada neste mês de setembro.

“Apostámos em ser um país de alta qualidade”, atirou Costa. “É uma aposta que não se alcança com uma varinha mágica, mas articulando um conjunto de políticas que nos permitam chegar lá”, a começar pelo investimento nas qualificações e no investimento — políticas que não são visíveis no curto prazo, mas só com paciência e sem as tais “ansiedades”, avisou.

Só não falou de um problema que ficara, literalmente, à porta: o ano letivo será agitado e era isso mesmo que asseguravam dois professores à entrada do hotel onde o PS se reuniu, gritando para Costa que queriam conversar e que estavam à espera do primeiro-ministro (o dirigente Porfírio Silva encarregou-se de responder, defendendo que “quem não respeita os partidos não respeita a democracia”, e o primeiro-ministro seguiu em silêncio).

O “moderado” e “equilibrado” Costa — adjetivos que o primeiro-ministro escolheu para se referir a si próprio quando falava das críticas ao pacote da Habitação — farta-se de “levar pancada”, mas sabe que “é com os otimistas irritantes que o país sempre foi para a frente”, garantiu. Em poucas palavras, Costa lançava farpas à oposição, mas também a Marcelo Rebelo de Sousa, o autor do cognome inspirado pelo tal otimismo sem fim. Um otimismo que deverá ser útil ao primeiro-ministro para enfrentar um ano de economia incerta e maioria absoluta, mas cada vez mais isolada.