Caetano já veio muitas vezes a Portugal, já lançou muitos discos, já escreveu muitas canções – talvez até de mais, declarou o próprio a respeito do tempo em que pensava que não voltaria a compor. Até que lhe apareceram os primeiros acordes do primeiro tema deste Meu Coco, disco de 2021, primeiro de originais em quase uma década e que o traz de volta à estrada aos 81 anos, possivelmente pela última vez. Depois, diz, quer voltar para a Bahia “e cantar lá toda a semana”. Mas alguma coisa acontece no nosso coração sempre que ele cruza a Avenida Atlântica. E juraríamos que no dele também.
Na primeira de cinco noites de concerto esgotadas em Portugal, as crianças na fila de trás perguntam à mãe se Caetano vai tocar X ou Y. Os sotaques delas têm diferentes graus de variação entre o português de um lado e do outro do oceano, provavelmente porque, na idade delas, disponível para absorver o universo inteiro, cada mês a mais ou a menos passado sobre o dia em que se mudou de continente conta como uma década no desenvolvimento da linguagem. Mas não é só o idioma que partilhamos, nem o gosto por Caetano, apesar das gerações que nos separam; é essa coisa comovente, ainda muito mais profunda e universal, de em crianças acharmos, verdadeiramente, que os pais sabem tudo.
Dez ou 15 minutos depois da hora marcada, apenas para dar tempo a todo o público de se acomodar nas apertadas cadeiras do Coliseu, numa noite muito mais quente que os alertas de mau tempo fariam adivinhar, o lendário baiano toma o palco, armado das respostas e do último meio século da banda sonora de milhões de vidas, pelo mundo inteiro. Começa em João Gilberto e acaba em Maria Gadú. Pelo meio, há Gal Costa, Jaques Morelenbaum (o “Jaquinho”), Bethânia (claro), Paul Anka, Doces Bárbaros, A Outra Banda da Terra, a Banda Nova, e até o fado, aquele de que Caetano se diz orgulhoso de ter ajudado os jovens portugueses dos anos 70 a reencontrar. Atravessamos tudo isso: os anos do exílio, as ditaduras de lá e de cá e as democracias, até à perplexidade perante o mundo contemporâneo e as suas respostas eletrónicas a problemas de carne e osso – e alma.
Meu Coco é um pretexto. O ponto de partida para um diálogo com a obra inteira em que temas novos e antigos se iluminam com uma naturalidade a roçar o inexplicável, como se as canções de há 50 anos conhecessem já de antemão as que o seu autor só haveria de escrever décadas depois. Por isso, vamos sem sobressalto de “Anjos Tronchos” a “Sampa”, de “Muito Romântico” a “Não Vou Deixar”, de “Trilhos Urbanos” ao melancólico e encantatório “Ciclamên do Líbano”. Caetano, canta, toca, às tantas despe elegantemente o casaco e dança, como se, além das canções, também o seu corpo nada queira saber da passagem do tempo.
“Eu agradeço ao povo brasileiro”, verso de “You Don’t Know Me”, arranca uma ovação emocionada de uma parte significativa da sala, confirmando o que já suspeitávamos: Lisboa é cada vez uma grande cidade lusófona, onde também o Brasil se pode reencontrar com ele mesmo. A seguir, e certamente não por acaso, Caetano interrompe o alinhamento para conversar com a plateia pela primeira vez: “Não tenho como dimensionar a importância que Portugal tem para a minha cabeça e o meu coração”. O cuidado na distinção anatómica é, como tudo no artista em questão, precioso, e dá entrada a Carminho, que o vem acompanhar no extraordinário “Você-você”, fado que Caetano compôs para o disco novo e que o público filma de telemóveis em punho, em violação tão clara como compreensível das normas anunciadas antes do início do espectáculo:
“Tu és você, sou você
Eu e tu, você e ela
Ary, Noel, Tom e Chico
Amália, blues, tango e rumba
Atabaque e bailarico
Peri, Ceci, Ganga Zumba”
Tudo entretecido e enternecido, como Poliane, psicóloga de Salvador, há um ano fora de casa, que canta ao nosso lado, e os lisboetas da fila da frente, que ainda há pouco faziam contas à localização dos novos radares de velocidade nas auto-estradas e, agora, se arrepiam com cada esquina dobrada devagar pela guitarra portuguesa de André Dias.
“Araçá Azul” e “Cajuína” ditam que se volte a dançar, “Leãozinho” e “Itapuã” embalam, “Pulsar” põe em música as palavras de Augusto de Campos, que Caetano descreve como o maior poeta brasileiro vivo, antes de pôr a sala a cantar em coro que “A Bossa Nova é Foda” e a nós a pensar nas crianças da fila de trás e em como é belo o exorcismo que o português do Brasil opera no palavrão. Depois, vimos de “Baby”, que Caetano cantava com Gal em 1969, cruzamos com “Diana”, que gravou em 2004 para A Foreign Sound, e chegamos ao “Menino do Rio”, Petit, aliás, José Artur Machado, surfista que inspirou a canção, composta de um só fôlego à mesa dum jantar de amigos. Pensamos como tudo passa e tudo fica. Como artistas como Caetano são também sobreviventes a todos os amigos que partiram e que continuam a cantar, sobreviventes até aos tempos que ajudaram a revolucionar, e admiramos, ainda mais, a leveza com que dança.
Estamos a chegar ao fim e ainda há mais um par de canções e um encore. Guardemo-las. Poupemos ao spoiler o leitor que ainda vai a uma das datas da digressão e deixamos o que não vai ouvir, mentalmente, o alinhamento que quiser. Ficamos a dançá-las com quem está e não está. Caetano é um dos maiores de sempre da língua portuguesa. Que bom que continua a escrever de mais.