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Caetano Veloso e as coisas que acontecem no nosso coração

Este artigo tem mais de 1 ano

“Meu Coco” traz Caetano Veloso de volta a Portugal, numa digressão que poderá bem ser a última. Para já, a primeira de cinco noites nos coliseus de Lisboa e Porto foi como seria de se esperar.

Dançamos com quem está e com quem não está. Caetano é um dos maiores de sempre da língua portuguesa. Que bom que continua a escrever de mais
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Dançamos com quem está e com quem não está. Caetano é um dos maiores de sempre da língua portuguesa. Que bom que continua a escrever de mais

ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

Dançamos com quem está e com quem não está. Caetano é um dos maiores de sempre da língua portuguesa. Que bom que continua a escrever de mais

ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

Caetano já veio muitas vezes a Portugal, já lançou muitos discos, já escreveu muitas canções – talvez até de mais, declarou o próprio a respeito do tempo em que pensava que não voltaria a compor. Até que lhe apareceram os primeiros acordes do primeiro tema deste Meu Coco, disco de 2021, primeiro de originais em quase uma década e que o traz de volta à estrada aos 81 anos, possivelmente pela última vez. Depois, diz, quer voltar para a Bahia “e cantar lá toda a semana”. Mas alguma coisa acontece no nosso coração sempre que ele cruza a Avenida Atlântica. E juraríamos que no dele também.

Na primeira de cinco noites de concerto esgotadas em Portugal, as crianças na fila de trás perguntam à mãe se Caetano vai tocar X ou Y. Os sotaques delas têm diferentes graus de variação entre o português de um lado e do outro do oceano, provavelmente porque, na idade delas, disponível para absorver o universo inteiro, cada mês a mais ou a menos passado sobre o dia em que se mudou de continente conta como uma década no desenvolvimento da linguagem. Mas não é só o idioma que partilhamos, nem o gosto por Caetano, apesar das gerações que nos separam; é essa coisa comovente, ainda muito mais profunda e universal, de em crianças acharmos, verdadeiramente, que os pais sabem tudo.

Dez ou 15 minutos depois da hora marcada, apenas para dar tempo a todo o público de se acomodar nas apertadas cadeiras do Coliseu, numa noite muito mais quente que os alertas de mau tempo fariam adivinhar, o lendário baiano toma o palco, armado das respostas e do último meio século da banda sonora de milhões de vidas, pelo mundo inteiro. Começa em João Gilberto e acaba em Maria Gadú. Pelo meio, há Gal Costa, Jaques Morelenbaum (o “Jaquinho”), Bethânia (claro), Paul Anka, Doces Bárbaros, A Outra Banda da Terra, a Banda Nova, e até o fado, aquele de que Caetano se diz orgulhoso de ter ajudado os jovens portugueses dos anos 70 a reencontrar. Atravessamos tudo isso: os anos do exílio, as ditaduras de lá e de cá e as democracias, até à perplexidade perante o mundo contemporâneo e as suas respostas eletrónicas a problemas de carne e osso – e alma.

ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

Meu Coco é um pretexto. O ponto de partida para um diálogo com a obra inteira em que temas novos e antigos se iluminam com uma naturalidade a roçar o inexplicável, como se as canções de há 50 anos conhecessem já de antemão as que o seu autor só haveria de escrever décadas depois. Por isso, vamos sem sobressalto de “Anjos Tronchos” a “Sampa”, de “Muito Romântico” a “Não Vou Deixar”, de “Trilhos Urbanos” ao melancólico e encantatório “Ciclamên do Líbano”. Caetano, canta, toca, às tantas despe elegantemente o casaco e dança, como se, além das canções, também o seu corpo nada queira saber da passagem do tempo.

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“Eu agradeço ao povo brasileiro”, verso de “You Don’t Know Me”, arranca uma ovação emocionada de uma parte significativa da sala, confirmando o que já suspeitávamos: Lisboa é cada vez uma grande cidade lusófona, onde também o Brasil se pode reencontrar com ele mesmo. A seguir, e certamente não por acaso, Caetano interrompe o alinhamento para conversar com a plateia pela primeira vez: “Não tenho como dimensionar a importância que Portugal tem para a minha cabeça e o meu coração”. O cuidado na distinção anatómica é, como tudo no artista em questão, precioso, e dá entrada a Carminho, que o vem acompanhar no extraordinário “Você-você”, fado que Caetano compôs para o disco novo e que o público filma de telemóveis em punho, em violação tão clara como compreensível das normas anunciadas antes do início do espectáculo:

“Tu és você, sou você
Eu e tu, você e ela
Ary, Noel, Tom e Chico
Amália, blues, tango e rumba
Atabaque e bailarico
Peri, Ceci, Ganga Zumba”

Tudo entretecido e enternecido, como Poliane, psicóloga de Salvador, há um ano fora de casa, que canta ao nosso lado, e os lisboetas da fila da frente, que ainda há pouco faziam contas à localização dos novos radares de velocidade nas auto-estradas e, agora, se arrepiam com cada esquina dobrada devagar pela guitarra portuguesa de André Dias.

ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR

“Araçá Azul” e “Cajuína” ditam que se volte a dançar, “Leãozinho” e “Itapuã” embalam, “Pulsar” põe em música as palavras de Augusto de Campos, que Caetano descreve como o maior poeta brasileiro vivo, antes de pôr a sala a cantar em coro que “A Bossa Nova é Foda” e a nós a pensar nas crianças da fila de trás e em como é belo o exorcismo que o português do Brasil opera no palavrão. Depois, vimos de “Baby”, que Caetano cantava com Gal em 1969, cruzamos com “Diana”, que gravou em 2004 para A Foreign Sound, e chegamos ao “Menino do Rio”, Petit, aliás, José Artur Machado, surfista que inspirou a canção, composta de um só fôlego à mesa dum jantar de amigos. Pensamos como tudo passa e tudo fica. Como artistas como Caetano são também sobreviventes a todos os amigos que partiram e que continuam a cantar, sobreviventes até aos tempos que ajudaram a revolucionar, e admiramos, ainda mais, a leveza com que dança.

Estamos a chegar ao fim e ainda há mais um par de canções e um encore. Guardemo-las. Poupemos ao spoiler o leitor que ainda vai a uma das datas da digressão e deixamos o que não vai ouvir, mentalmente, o alinhamento que quiser. Ficamos a dançá-las com quem está e não está. Caetano é um dos maiores de sempre da língua portuguesa. Que bom que continua a escrever de mais.

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