Não importa quantas páginas se lêem sobre o Holocausto. É sempre o mesmo choque. Ler dez livros de enfiada sabe sempre a novidade e a inconcebível, e o mesmo se passa com ler o mesmo livro dez vezes seguidas. Ainda que pareça que já tudo é livro aberto, reforçar o que é sabido continua a saber a impossível. Com Noite, chega-se ao fim do livro julgando o que se julga sempre: ainda não pode ter acontecido.
Em 1986, Elie Wiesel ganhou o prémio Nobel da Paz pelo conjunto da sua obra, de 57 livros, em que guarda a memória do Holocausto. Este Noite é um desses livros. Wiesel viveu o Holocausto e sobreviveu-lhe. Nascido numa família judia na Roménia, foi metido num vagão de carga em adolescente. Dali seguiu para Auschwitz e depois para Buchenwald. Acompanhamos o rapaz ao mesmo tempo que vemos o seu pasmo: a cada movimento feito, ainda sobram a dúvida, a incerteza. O leitor parece estar já um passo à frente da acção, e não deixa de arrepiar ver como aqueles passos seguem em frente sem saberem que vão para um matadouro.
Este é o relato do que Wiesel ali viveu. Sem enfeites, o horror que põe nas páginas é o horror que o leitor vê. O relato, sendo pessoal, é colectivo em simultâneo. Ao descrever o assassinato de um povo, descreve também o drama individual: o medo, a perda da inocência, a quebra na esperança religiosa, a morte como coisa que vem dar cabo do cansaço, a desumanidade, a incompreensão.
Já nada sendo desconhecido, o livro ainda escandaliza e choca o leitor em 2023. Imagine-se então o quão inconcebível foi ouvir relatos de vagões cheios de crianças prontos para abastecer câmaras de gás. Foi o que aconteceu em Sighet, onde Wiesel morava em miúdo. Uma testemunha que houvera sido capturada e então escapara descreveu os horrores do que vira – em vão, uma vez que quem o ouvia o tomava por louco. Ali ficou então um povo à espera dos nazis, por julgá-los incapazes de fazerem o que viriam a fazer-lhe.
Título: “Noite”
Autor: Elie Wiesel
Editora: D. Quixote
Tradução: Paula Almeida
Páginas: 136
Depressa a realidade tomou conta da descrença – e mesmo perante as evidências tudo sabia a impossível. Com os alemães, chegaram as proibições: ir a restaurantes, frequentar a sinagoga, andar de comboio, sair de casa. Quando é criado um gueto, ainda se vive uma ilusão. Aquilo sabe a comunidade. Depois vêm os comboios e nem Auschwitz se anuncia de caras: quem lá chega não tem como saber a priori ao que chega.
O livro é curto. Em pouco mais de cem páginas, fica marcada a onda que varreu a Europa, o ódio que criou a desumanização, a condição a que um povo inteiro ficou submetido, metido numa engrenagem que parecia imparável, numa máquina poderosa com milhares de cúmplices. E o choque continua a ser o ponto em que essa desumanização foi criada e em que o ódio criou a animalização do outro, reduzindo-se a humanidade às cinzas a que se foram reduzindo também milhares de corpos – de pessoas.
O sofrimento é marcado pelo cansaço do trabalho forçado e pela certeza de que não haverá futuro. Os enforcados, antes de que o ar deixe de lhes passar pela garganta, já nem choram porque não têm dor para dar. Os religiosos rezam pelos mortos – sendo que desta vez rezam por si mesmos. E outros, perante a falta de esperança, já deixam de acreditar num deus que os possa salvar:
Antigamente, acreditava profundamente que de um único dos meus gestos, de uma só das minhas orações dependia a salvação do mundo.
Hoje, já não implorava. Já não era capaz de me lamentar. Sentia-me, pelo contrário, muito forte. Eu era o acusador, e o acusado era Deus. Os meus olhos tinham-se aberto e eu estava só, terrivelmente só no mundo, sem Deus, sem homens. Sem amor nem piedade. Já não era mais do que cinzas, mas sentia-me mais forte do que o Todo-Poderoso ao qual a minha vida durante tanto tempo tinha estado ligada.” (p. 83)
Vêem-se milhares de pessoas aos molhos, unidas por uma condição identitária, mas tudo o resto é solidão. Não apenas há nazis à volta, como há o resto do mundo, que permite que os nazis cometam crimes legais e morais. O estado de desumanização a que o povo judeu é largado é de tal forma chocante que até chocaria se estivéssemos a falar de animais. Se na vida não lhes é concedida dignidade, quanto mais na morte. E então, à saída de um campo de concentração, agora a ser transportado num comboio, Wiesel descreve o horror da viagem: centenas de pessoas sem espaço, sem comida, sem calor – sem esperança; gente que morria e era atirada borda fora para não ocupar espaço inutilmente:
Vivíamos da neve: ela ocupava o lugar do pão. Os dias assemelhavam-se às noites e as noites deixavam nas nossas almas as borras da sua escuridão. (…) Permanecíamos agachados durante todo o dia e toda a noite, uns em cima dos outros, sem dizer palavra. Não éramos mais do que corpos gelados. De pálpebras fechadas, só aguardávamos a paragem seguinte para descarregar os mortos.” (p. 117)
Perante o mal absoluto, Elie Wiesel descreveu a morte do seu deus. Era impossível amá-lo ou acreditar nele se largava o seu povo ao anti-semitismo e ao gás. E, perante o mal absoluto, vê-se sobretudo, e desta vez sem subjectividade, a morte da humanidade, da bondade, da empatia, do reconhecimento da existência do outro. Em Noite, Wiesel descreve em primeira mão o que foi ter os olhos ante o escuro, sem que parecesse haver hipótese de sobrevivência, de salvação. Quem lê não fica incólume. Em vez de explicações, tem os factos.
A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico