“Bem, vou andando. Estou cansado. Acho que vou morrer esta noite.”
É compreensível. Quando Augusto Pinochet profere esta frase após um jantar de família já tem uns bons 200 anos. É que no novo filme da Netflix, o ditador chileno é um vampiro que já despachou basicamente tudo o que tinha na lista de afazeres (golpe de estado, crimes de guerra, genocídio, violações de direitos humanos e por aí fora) e está entediado e velho. Resta o quê? Falecer em paz e sossego.
Porém, a última vontade não é assim tão fácil de satisfazer quando a rondar andam os cinco filhos, a quem só interessa a herança; a companheira de décadas que sonha ser mordida e recomeçar a vida, com uma nova identidade, noutro ponto do mundo; um sinistro mordomo que é igualmente vampiro; e uma freira exorcista que aparece sedenta de vingança. Se tudo isto parece estranho e sem grande nexo é porque é. O Conde é puro humor negro e está longe das biografias pelas quais o realizador Pablo Larraín é conhecido (Jackie, Spencer). Vencedor do Prémio de Melhor Argumento (assinado pelo realizador e por Guillermo Calderón) no Festival Internacional de Veneza, este filme tem uma ideia perfeita à partida que, apesar dos esforços, nunca atinge o potencial prometido.
[o trailer de “El Conde”:]
A ditadura de Pinochet já tinha tido direito a uma trilogia no currículo de Larraín (Tony Manero, Post Mortem, Não) mas a figura nunca tinha sido personagem principal. Até agora. Os horrores cometidos por ele não são a história central, mas a crueldade e a frieza estão sempre a pairar. De forma implícita e também bastante explícita. Jaime Vadell (que interpreta Augusto Pinochet) nem precisa de abrir a boca para nos gelar o sangue. O semblante fechado e o olhar de desdém fazem tudo sozinhos. Por falar em sangue, é isso que alimenta os vampiros e este gosta especialmente de arrancar corações, triturá-los numa liquidificadora e beber espessos batidos. É absurdo? Claro que sim, mas esse é um dos principais traços do humor negro.
Aqui, o vampirismo funciona como a metáfora para a ditadura. Dura sempre tempo a mais, é muito difícil matá-la e erradicá-la ainda mais. Basta uma mordida para se propagar e, assim, prolongar o ciclo sem fim.
Pinochet, o verdadeiro, morreu em 2006 após um ataque cardíaco. Para trás tinha deixado uma ditadura de 17 anos, cujos efeitos se prolongaram bem além disso. Pinochet, o fictício, finge a própria morte e está numa espécie de reforma numa propriedade afastada da civilização na Patagónia à espera da morte. A mulher não é vampira, os filhos não são vampiros, mas todos têm uma crueldade refinada que se manifesta na ganância e na falta de empatia. O (aparentemente) super fiel mordomo Fyodor (Alfredo Castro) é vampiro, braço direito, cão de fila, triturador profissional de corações, duplo: basicamente tudo em um. Nenhum destes peões quer que Augusto Pinochet morra, pelo menos para já, mas por motivos bem diferentes.
Recuando os tais 200 e tal anos, ficamos a saber onde começa a história. Claude Pinoche: assim se chama a criança francesa órfã que, ao crescer, decide “lutar contra todas as revoluções”. Sedento de sangue, literalmente, alimenta-se das gotículas deixadas na guilhotina de Maria Antonieta e até rouba a cabeça da rainha francesa antes de desaparecer sem deixar rasto. É hilariante e subtil. Até aqui tudo perfeito.
O vampiro volta a aparecer em 1935 no Chile, já como Augusto Pinochet Ugarte. Porquê o Chile? Por ser um sítio aparentemente sem rei nem roque, onde é fácil ser o conde, como ele quer ser tratado. Nos anos 70 derruba o governo de Salvador Allende e deita as garras sobre o país. Tudo isto é contado por uma narradora, em inglês, com um sotaque muito british, apesar de os diálogos acontecerem na língua materna. Porquê a escolha do inglês? A resposta só aparece mais lá para o final, quando é revelada a identidade da narradora, uma decisão tão nonsense quanto brilhante que acrescenta mais uma camada à origem da história deste Pinochet.
A metáfora para a tirania está lá, as várias formas de malvadez manifestam-se consoante as características de cada personagem, mas o filme também se dispersa por isso. São muitas personagens (só filhos, somam-se cinco) que nem sempre protagonizam momentos empolgantes. São, até, bastante enfadonhas, embora a presença da freira Carmen (Paula Luchsinger) — supostamente uma contabilista que vem ajudar a desenterrar a fortuna espalhada do ditador que os filhos tanto perseguem —, que, sempre com passividade no rosto, fala de atrocidades ou crimes como se estivesse a dizer que a temperatura no dia anterior tinha registado menos dois graus nos desperte alguma curiosidade. Nem sempre é suficiente. Apesar de não chegar às duas horas, o filme parece bastante longo. Ainda assim, tem elementos hipnotizantes. O facto de ser todo a preto e branco é um deles. A fotografia (assinada por Ed Lachman) destaca-se sobretudo nas imagens aéreas quando o vampiro passa de um cenário deserto para sobrevoar uma cidade esmagadora, cheia de torres e luzes, como Santiago do Chile.
“Alguém andou a comer corações em Santiago, pai”, diz uma das filhas à mesa de jantar, como se fosse um ralhete tão inofensivo quanto “alguém andou a comer bolachas às escondidas durante a noite, pai”. É este tipo de interações que faz O Conde valer a pena. Mas, fica o aviso: quem não for consumidor de humor negro, não vale a pena provar. Nem como batido, bem triturado na liquidificadora, vai conseguir digerir isto.