Chegou a Portugal já sob o aplauso da crítica internacional. Os críticos literários do New York Times já haviam considerado Vínculos Ferozes o Melhor Livro de Memórias dos Últimos 50 Anos. Publicado em 1987, no original, conta agora com tradução de Maria de Fátima Carmo e selo da D. Quixote.
Nascida em Nova Iorque, em 1935, Vivian Gornick conta os seus primeiros passos no Bronx. No centro das memórias, temos a relação da narradora com a mãe. Esta vai sendo apresentada como conturbada, no que vai implicando um conflito de gerações que parece marcar uma época e um lugar. Ao longo dos anos, pelo olhar de Vivian, o leitor vai assistindo a contornos familiares que se traduzem numa luta pela independência, numa relação tratada sem pó de arroz.
Já adulta, Gornick caminha com a mãe idosa pelas ruas de Manhattan. Nelas, está o que são, alicerçado no passado do que foram. E a vida de décadas entre mãe e filha tem tudo lá dentro, de cumplicidades a ressentimentos. O crescimento no Bronx vai existindo em camada dupla, com a autora a optar por contar a vida de uma casa ao mesmo tempo que abre a janela para Nova Iorque. Por um lado, temos a condição específica daquela vida familiar, com a mãe a viver em depressão após a viuvez; por outro, temos os conflitos de bairro, os jogos de cintura, as cumplicidades, as pequenas vitórias, os julgamentos de quem vive de porta aberta para os outros, de quem se vê metido num convívio a que parece não ser possível escapar-se. Isto vai registando a pobreza de um lugar, que tanto existe do ponto de vista económico como intelectual: à medida que Vivian cresce e lê e estuda, ganha vocabulário, marcando uma diferença que passa a ser vista com animosidade, como um conflito.
Como a mãe parece impor barreiras à vida, à acção e ao pensamento, a própria escrita ganha contornos libertadores, sendo porta aberta para o mundo, total liberdade intelectual, forma de criar contrapontos. Isto, claro, mostra a vida de uma casa ao mostrar a vida de várias casas, permitindo ao leitor ter acesso a um espaço doméstico ao mesmo tempo que recebe um retrato social. As personagens são gente, pois claro, mas estão para o leitor construídas também como personagens, no sentido em que Vivian Gornick usou as técnicas literárias para saber onde pôr a tónica e para dar ao leitor o que interessa. Desta forma, o livro de memórias não se lê como coisa estática, voltada para dentro, antes como uma composição orgânica que agarra o leitor até que este possa atar as pontas.
Título: “Vínculos Ferozes”
Autora: Vivian Gornick
Editora: D. Quixote
Tradução: Maria de Fátima Carmo
Páginas: 200
Neste cenário, de janela aberta para o Bronx, destaca-se ainda a ausência de homens na vida familiar, o que também não será aqui coisa de somenos. Não é preciso grande esforço para que o leitor se aperceba disto, nem a autora precisa de o dizer explicitamente. Bastam umas páginas para se ver a casa como território feminino, o que implica que aquela gente ali retratada pareça cumprir um papel pré-determinado de domesticação. A narrativa, ao fechar-se principalmente na casa e no bairro, vai mostrando que o mundo lá fora continua a mexer, e fá-lo com um olhar incisivo que rouba o tutano à vida. É que a escrita de Vivian Gornick é clara, escorreita e capaz de pôr o leitor no centro da acção. É fácil que um livro de memórias se perca em ânsias contemplativas, mas em Vínculos Ferozes o leitor nunca perde o tom conversacional nem coloquial.
A relação de Vivian com a mãe vai sendo não só de particular interesse, mas também força-motriz do livro, sendo o eixo que permite a sua execução orgânica. Esteja o leitor a ler sobre a infância no Bronx, o início da idade adulta na Califórnia ou a idade adulta em pleno em Manhattan, é a essa relação inaugural que tudo vai beber. Como o ritmo da acção – das acções – é rápido, o leitor vai levando com uma série de episódios em catadupa que compõem um panorama.
Muitas críticas ao livro têm apontado a disfuncionalidade da relação entre mãe e filha. Regra geral, este é um ponto referido em praticamente todos os romances que fazem da família o seu foco principal. Pegar na ideia de disfuncionalidade pode implicar a ideia de um padrão, e então a de um desvio. O que interessa ao campo literário, e aqui também, é pegar no touro pelos cornos, que aqui quererá dizer a vida como ela é. Só isso permite ao escritor dar sentido a uma casa, e permite, de seguida, ao leitor, ter um panorama sobre essa casa – com o conteúdo depurado, manipulado, como tem de ser.
Em Anna Karenina, Tolstoi bem disse que todas as famílias felizes são parecidas, e que as infelizes o são cada uma à sua maneira. A questão aqui é que uma família feliz – coisa sem história – não dá literatura. Não apresenta vísceras a serem analisadas ou resgatadas para o plano da observação crítica. Em Vínculos Ferozes, temos um conflito interno – no seio de uma casa – como elemento primordial na constituição de uma psique, do que Vivian é e foi ao longo da vida. Claro que a ideia do sangue pesa muito, principalmente porque aqui o sangue implica um acompanhamento desde o primeiro minuto, e a sua subsequente influência. A afinidade, contudo, é outra coisa, e a autora vai doseando os episódios descritos, até com recurso a representações em discurso indirecto, com um permanente regresso ao contexto. Para o leitor, há, desta forma, um livro aberto para a vida.
A relação entre mãe e filha atravessa décadas, e a vida em geral também o faz. Fora deste núcleo, vamos vendo a sociedade transformar-se – e Nova Iorque também. As expectativas sociais vão mudando e o embate de gerações acompanha um fenómeno global que contrapõe o pensamento conservador ao progressista – que contrapõe uma ideia estática a uma quebra com o que existe. Assim, o quotidiano apresentado nunca chega a ser datado, chegando o leitor a uma narrativa crua, abrangente, onde mora a experiência humana sublimada, sem gorduras.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia