Grupos organizados (a favor e contra), críticas abertas, ânimos tensos, discussões acaloradas. Este podia ser a descrição de uma qualquer Assembleia Geral do Sporting nos primeiros tempos de Frederico Varandas como presidente dos leões, na sequência do sufrágio eleitoral de 2018 aberto pela destituição do anterior Conselho Diretivo liderado por Bruno de Carvalho. No entanto, e com o passar dos anos, a realidade foi mudando. O facto de se poder votar qualquer proposta ao longo de todo o tempo da reunião magna também esvaziou esse ambiente mas o próprio clube entrou numa fase de maior pacificação entre clivagens notórias que continuam ainda a existir. Olhando para as últimas Assembleias Gerais, realizadas em dias de jogo, houve uma participação maior e também uma percentagem de aprovação exponencialmente mais elevada do que estava a ser votado, entre Orçamentos e Relatórios e Contas. Agora, este contexto será colocado à prova.

Há três pontos em votação no próximo domingo que parecem não merecer discussão: as contas do exercício de 2022/23, que fecharam com um lucro líquido de 431 mil euros entre os recordes de receitas a nível de quotização e a redução do passivo em 1,8 milhões; a atribuição do nome de Cristiano Ronaldo à porta 7 do Estádio José Alvalade; e a venda de um imóvel que pertence ao clube em Benavente a pedido de um grupo de associados que pertencem reativar nesse espaço o Núcleo dos leões. Entre estes, o ponto 2 merece outro tipo de discussão no universo verde e branco, com a proposta para que entre nos Estatutos a possibilidade de voto eletrónico à distância, “que deve garantir o segredo do voto e a autenticidade do meio utilizado e dos resultados, sendo o processo assegurado por uma entidade independente ao clube e devidamente auditado”. É aqui que entronca o maior foco de discussão pelos 75% de votos necessários.

Ponto prévio: com “sim” ou “não” à medida, favorável ou contra de forma parcial ao que é proposta, existe a noção de que ambas as visões têm justificações “legítimas” entre uma maior democracia em todo o processo, a possibilidade de ter um maior número de votos a sufragar decisões ou um cenário que quase se aproxime do caciquismo que já se viu em alguns partidos políticos. Foi isso que se discutiu nos últimos dias.

A maior participação dos sócios vs. a mudança quântica no pressuposto de confiança

“Temos um debate grande para desenvolver em Portugal a nível de reformar estruturais que temos de fazer para acompanhar a evolução da sociedade, seja na política, no desporto, na economia ou na cultura. São as mudanças que conferem a opção e a possibilidade aos cidadãos ou neste caso aos sócios de conseguirem ter uma participação mais ativa nas decisões. É algo que não é aconselhável para precipitações ou como uma motivação para algo a breve prazo mas que, passando ao lado disso, é algo que faz bem aos fundamentos democráticos de qualquer instituição para haver uma maior participação dos seus membros e melhorar essas condições da própria participação. Por isso, considero ser uma boa medida”, explicou ao Observador a esse propósito Augusto Mateus, antigo ministro da Economia e sócio do clube verde e branco.

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“Maturidade democrática depois de tudo o que se passou em 2018? Penso que é um problema até geral e que se pode ver em diversas áreas. Temos vários setores de alguma fragmentação onde é complicado encontrar pontos de convergência, as próprias economias estão mais fragmentadas. O que se deve sempre evitar é que se mova para fazer referendos sem discussão mas isso não tem a ver com as condições de votação. Não se deve recorrer a soluções radicais. As Assembleias Gerais, nos casos dos clubes, devem existir sempre para haver uma reflexão, uma troca de opinião, uma argumentação que às vezes até pode fazer com que tenhamos a perceção de que estávamos mal. É como as atuais plataformas para termos reuniões de forma digital, a regra deve ser sempre os encontros presenciais porque são mais ricos. A proposta que é agora apresentada consegue maximizar a participação e isso parece-me correto”, acrescentou o economista.

“Um sistema eleitoral não pode ser escolhido com base na confiança que temos em quem ocupa naquele momento o poder, mas sim com base no pressuposto de que o poder (e esse sistema) pode vir a ser controlado por alguém de quem profundamente desconfiamos. Não vou valorizar a questão mais discutida: a segurança. Refiro apenas que só a Estónia o mantém e que outros que o testaram não o implementaram. Vamos presumir que seria possível ter um sistema online totalmente seguro. Essa segurança será controlada por uma entidade escolhida para assegurar o escrutínio eleitoral. Isto pressupõe uma mudança quântica no pressuposto de confiança em que assentam os atos eleitorais”, começou por defender Miguel Poiares Maduro, antigo Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, na rede X, que abordado pelo Observador voltou a recuperar os estudos internacionais que apontam para essa renitência.

“Hoje o voto é controlado pelo eleitor e o escrutínio feito pelos representantes das diferentes candidaturas. Este escrutínio passaria a ser delegado numa entidade terceira. No caso do clube, uma entidade escolhida pela direção em funções. Este é um salto enorme de confiança. Aqueles que agora apoiam este sistema também o fariam se fosse um Presidente de quem desconfiassem a escolher a entidade a quem passaria a ser confiado o escrutínio do voto? Estas regras vão valer quer para presidentes em que confiamos quer para alguns em que não confiemos. E essa confiança será de todos e permanente? Num clube com as divisões do Sporting, numa próxima eleição em ambiente de conflitualidade uma lista derrotada aceitará um resultado escrutinado por uma entidade escolhida pela direção (qualquer que seja a direção em funções)?”, prossegue Miguel Poiares Maduro a esse propósito, numa continuidade do documento que o Observador tinha dado conta em 2020 onde o antigo Ministro Adjunto e do Desenvolvimento Regional, a par de outros associados do clube, defendiam o voto descentralizado pelos Núcleos mas sem i-voting.

“Quando olhamos à volta, o Governo e as instituições financeiras são têm procedimentos eletrónicos. Desde que seja sempre defendida a transparência e o debate democrático das propostas em discussão, tem de haver confiança depois por parte de todos. O resultado positivo é que se alarga a participação dos associados, o que é bom, desde que não se parta para situações de quase referendos sem discussão. É uma evolução natural desde que seja sempre fora do âmbito de algo pensado a breve prazo”, referiu Augusto Mateus, que admite a existência de riscos esbatidos numa ótica de processo em constante evolução para melhorar.

“Caciquismo? Esse risco existe sempre, em tudo. As coisas não são feitas apenas num golpe, fazem parte de um processo por forma a criar uma coexistência de várias formas de participação. Temos experiências más de como as plataformas digitais podem alimentar formas populistas de política ou facciosismo em relação aos clubes desportivos. Claro que é mais complicado juntar pessoas em termos físicos para colocar em autocarros do que juntar essas pessoas num processo digital, temos os exemplos dos programas de TV onde qualquer concorrente pode contar com votos de família, de amigos, amigos dos amigos. Mas isso combate-se com a melhor democracia, com transparência, com todos os controlos. É uma mudança necessário que não é feita de forma precipitada. Não se pode substituir tudo para a parte digital de uma só vez”, salientou.

“O voto online também acaba com a confidencialidade do voto, agravando-nos riscos de controlo e compra de votos. Estas práticas já existem, mas estão limitadas por voto presencial ocorrer em última instância em segredo, onde ninguém poder ser pressionado ou controlado. Passa a permitir, por exemplo, que grupos organizados estejam junto dos seus membros para garantir que eles votam como pretendido. Permite também a venda e controlo do voto (na prática vendem-se os dados – senha, número, etc. – que permitem exercer aquele direito de voto online). Temos um problema sério de baixa participação. No Sporting e na política também. Mas a solução não pode trazer problemas ainda piores. No mínimo, qualquer avanço nesta matéria deve ser gradual e ser controlado por uma entidade totalmente independente que não pode ser escolhida por quem exerce o poder num determinado momento mas resultar de uma maioria qualificada numa Assembleia presencial”, defendeu Poiares Maduro, com a apresentação de alguns artigos da comunidade científica que defendem que “o voto online continua inseguro”.

“Teremos um clube mais democrático com o voto universal”, defende João Palma

Já depois de um artigo de opinião de Frederico Varandas, presidente da Direção do Sporting, também João Palma, líder da Mesa da Assembleia Geral, defendeu no jornal do clube a importância da proposta que será sufragada este domingo. “É o cumprimento de uma promessa eleitoral com a qual me identifico. É um momento histórico para o clube, um ponto de viragem, um passo enorme para a modernidade. Teremos um clube mais democrático com o voto universal e a possibilidade do exercício do direito de voto por todos os sócios. Não apenas por aqueles que, por razões de proximidade e disponibilidade, conseguem comparecer às assembleias gerais e que são tradicionalmente muito poucos face ao universo total dos Sócios. Como presidente da Mesa é um momento particularmente gratificante”, escreveu num artigo de opinião.

“A votação eletrónica presencial já está prevista e tem sido utilizada em assembleias gerais, mesmo nas eleitorais. Pretende-se agora obter junto dos sócios aprovação para a necessária alteração dos estatutos que permita o recurso a votações eletrónicas à distância, que dispensem a presença física do sócio. Os sócios poderão começar a votar a partir de qualquer lugar, do continente, das regiões autónomas ou do Mundo. O Sporting é um clube com dimensão nacional e internacional, temos associados em todos os cantos do território nacional e em todos os continentes que estão hoje privados de participar na vida associativa e de exercerem o direito de voto. Não se concebe que, nos dias de hoje, na era da digitalização, onde até os movimentos bancários e pagamentos são feitos pela internet, num clube como o nosso, não seja possível o exercício do direito de voto remotamente através do telefone ou do computador, com as necessárias salvaguardas”, completou ainda a esse propósito João Palma no mesmo texto.

De opinião contrária é o movimento “Hoje e Sempre Sporting”, que também discorda “do modelo das Assembleias Gerais implementado pela Mesa” porque “só faz sentido dar início à votação após apresentação e discussão de cada um dos pontos da Ordem de Trabalhos. Só através do debate de ideias é possível um total esclarecimento dos sócios”. “Esta será, com toda a certeza, a Assembleia Geral mais importante desde que este Conselho Diretivo tomou posse, em face do tema em discussão e do impacto que o mesmo terá, já no imediato, na relação entre os sócios e o clube”, acrescenta também num comunicado lançado.

“Gostaríamos de informar os sócios do Sporting que o Voto Universal (voto pela internet) mais não é do que o i-voting, agora com uma nomenclatura diferente, que o Conselho Diretivo tentou implementar em 2019, não tendo avançado porque muitos sócios se manifestaram contra. Nada nos move contra o voto eletrónico, desde que o mesmo seja presencial e garanta a confidencialidade e intransmissibilidade do mesmo, suportado num comprovativo físico, como aliás se verificou na última assembleia geral eleitoral. E para que não restem dúvidas, o voto eletrónico à distância não permite obter o seu comprovativo físico, pelo que o sócio votante perde o rasto do seu voto, o que impede que se possa fazer uma recontagem imediata, se necessário. Infelizmente, nas inúmeras experiências com voto pela internet realizadas pelo mundo fora, quer em países, quer em organizações, são múltiplos os problemas verificados, o que coloca em
causa a segurança, fiabilidade e transparência deste meio de votação”, explica o mesmo texto do movimento.