De regresso aos bastidores, Joaquim Trindade ajuda a despir as manequins, enquanto os quatro coordenados que apresentou voltam para os cabides e charriots. Os atilhos dos corpetes e a robustez das peças assim obrigam à intervenção de um segundo elemento, não fosse o imaginário explorado também um novelo de fios nem sempre com final feliz. “É uma coleção conceptual que conta a história de uma jovem cuja vida começa de forma muito inocente mas termina de forma trágica; com amores não correspondidos, amores violentos — acaba morta mas é quase como um casamento pós vida com a sua esperança como fantasma.”. Não se desvie já, porque o que se segue está longe de ser um susto, bem pelo contrário, e merece um olhar mais demorado em cada detalhe.
Natural da Covilhã, Trindade destacou-se em 2022, quando venceu na categoria destinada a alunos com mais de dois anos de formação em design de moda, no âmbito do concurso jovens criadores Portuguese Fashion News. Na altura, o estudante de mestrado em Design de Moda da Universidade da Beira Interior apresentou um coordenado desenvolvido com tecidos fornecidos pela empresa nacional Troficolor Denim Lakers. Para o quarteto de hoje, volta a recorrer ao mesmo fornecedor em cerca de 90%, entre gangas e sarjas, a que se juntam apontamentos de algodão e tafetã normal, e também um apontamento de chiffon num dos tecidos. “Há muitos detalhes que demonstram e revelam o corpo. Foi tudo uma empreitada de uma pessoa só. Fiz a modelagem, cosi, fiz tudo.”, explica Joaquim. Três dos coordenados foram feitos em fevereiro passado. O coordenado preto foi feito agora, nos últimos 20 dias, “quando soube que vinha apresentar. Já estava preparado mas só me deram a certeza nessa altura”.
Sobre esta cápsula, o designer chamou-lhe “Freezer Bride”, uma noiva cuja mente e alma se baseiam num álbum conceptual de Ethel Cain (alter-ego de Hayden Anhedonia), inspirado no universo sombrio criado por Cain. A coleção inspira-se no período Eduardino e nas Gibson Girls. E se tudo isto dava um encantador álbum tão gráfico quanto dark, esta figura feminina ganha estrutura e desfila pela passerelle do Portugal Fashion. O resultado é um impressionante trabalho de modelagem, numa alusão às linhas da musculatura, e com bainhas inacabadas que simbolizam fins nefastos e sonhos desfeitos. Sobre os próximos passos, tudo em aberto, mas por favor não o deixem abrandar.
“Ainda não tenho planos. Esta coleção foi feita de forma conceptual, para comercialização teria que ser adaptada para formas mais simples e menos detalhadas. Aquilo que me apaixonou no mestrado foi mesmo a modelagem, por isso a criação não é o foco, a modelagem será a prioridade nos anos que vêm. E depois logo se vê.”
House of Wildflowers e o adeus a tudo o que conhecemos
Ao segundo dia de calendário, e com os designers africanos de novo a preencherem a agenda com o projeto Canex Presents Africa, coube aos novos talentos da plataforma Bloom mostrarem as novidades da Moda a norte. No Museu do Carro Elétrico, no Porto, a 53.ª edição arrancou esta terça-feira, um dia com direito a um roteiro industrial para identificar possíveis parceiros de produção. Quarta, as coleções regressaram ao lugar da passerelle.
Chamemos-lhe “pastel punk” ou “rough romantic”, um arranque fúnebre coroado com um nota de esperança, define o designer israelita que resume desde logo o encontro de polos no nome da marca. “É um choque entre o selvagem e aquilo que é ao mesmo tempo é delicado. Temos que ter esperança em paz e coexistência porque todos merecem viver em paz e com saúde”. Para Amir Shavit, as últimas semanas têm sorrido à sua House of Wildflowers, que na passada edição dos Globos de Ouro vestiu Soraia Tavares, Inês Marques Lucas, e Vicente Wallenstein, mas as notícias mais recentes que chegam do Médio Oriente deixam o designer, de origem israelita, fixado em Lisboa já há alguns anos, de pele “arrepiada”.
Um ano depois de se mostrar no concurso Bloom (concurso agora em stand by), o atual momento social e político não passa à margem da oportuna intenção da mostra de coordenados. “Esta coleção nasceu em março, muito antes de imaginarmos estes dias que vivemos. Têm sido muito intensos. É incrível pensar que o fim da linha de montagem acontece aqui, num país onde vivo, que amo e onde me sinto seguro, mas sabendo que a minha família inteira e amigos podem estar em perigo. Estranhamente, esta coleção assenta a esta história. De certa forma, o conflito entre Israel e Palestina neste momento também significa o adeus [que aqui transmito], porque nada será como dantes depois disto.”
Cerca de duas horas antes do timing previsto para o desfile, as peças repousam profeticamente no respetivo charriot, enquanto se ultimam pormenores. “Goodbye Reality” transmite uma despedida da realidade, de um solo firme, de um conjunto de certezas que tínhamos até agora. Por um lado as saudades de casa e da família, de experiências tácteis como manusear álbuns de infância, por outro o triunfo de uma era marcada pela Inteligência Artificial “em que não sabemos bem que imagens são verdadeiras ou falsas, o mesmo se passa com a música, os livros, penso que começamos a questionar se cada aspeto da nossa vida é real. “Há medo e tristeza pela incerteza mas também esperança pelo futuro”.
É assim que esta procissão começa com uma viúva, a negro, (carregando um velho álbum de fotos que custou 25 euros na Feira da Ladra, depois de muito trabalho para convencer o vendedor) e encerra com uma noiva, irreverente sempre, mas ainda sempre de branco, ansiosa por novas experiências, novos renascimentos.
O rigor e severidade da era vitoriana servem de inspiração mas também as alusões ao passado; os prints criados digitalmente, ou com recurso à tal IA. “À medida que me estabeleço como designer, percebo que adoro usar a linguagem de alfaiataria, o denim, algo rústico e punk. Penso sempre qual e o próximo capítulo que quero contar da história, os materiais, as cores. O fantástico da moda é que quando está feito só queremos algo novo.”, diz Amir, que continua a focar-se em métodos sustentáveis, prints reciclados, e no caso dos materiais virgens tentando que sejam orgânicos — para não falar de reutilizar o que já existe. Exemplo? Uma saia feita só com slides.
Tudo o que Andreia Reimão sonha (e que é bem concretizado)
Com meia hora para lá da hora prevista, Andreia Reimão e Kaya Magalhães trouxeram a moda para a rua, e seguem, literalmente sobre carris. Se a segunda voltou, mais uma vez, a sítios onde já foi feliz, entre infância e adolescência, sonhos coloridos embrulhados em volumetrias exageradas ilustrações, devidamente inspirada na série/fenómeno juvenil “Morangos com Açúcar”, a primeira (outra anterior vencedora Bloom) compôs uma “Ode to Dreams”. Uma reflexão sobre o percurso académico, aquilo que continua a fazer sentido e tudo o que é descartado para continuar em frente. “Achei que neste momento fazia sentido olhar para trás, ganhei o Bloom com uma coleção feita ainda durante o curso e sinto que queria encerrar esta fase de estudante. Fui buscar portfolios antigos, há coisas que ainda cá estão, outras que já não fazem sentido nenhum. Lembro-me que adorava cores extremamente vibrantes com as quais já não me identifico nada. E estava concentrada muito em fazer womenswear.”, recorda nos bastidores, depois do desfile.
Em busca de uma identidade que se explora e renova a cada ensaio, sempre fresca e indomável, a pandemia redirecionou o curso da designer, que concedeu primazia a uma moda masculina que é na verdade absolutamente transversal. É por aí que se mantém, segura, trilhando as peças de alfaiataria, pontuadas com detalhes que frisam o seu ADN. Não falta um conjunto branco em organza derretida que apelidou de “nuvem”, mais experimental e que em boa hora não ficou na gaveta; um blazer preto que é um (nada) básico instantâneo, e um outro, em algodão, com uma delicada linha brilhante de lantejoulas; e ainda calças e tops altamente vestíveis e, não menos relevante, uma estreia no denim — “nunca tinha trabalhado, mas é denim com renda, o que faz sentido agora”. Debaixo de olho ficou-nos o top branco com fit de crochê e rendas e lantejoulas, mais um vivo prateado, e por fim muitas camadas de goma para endurecer o material. “Queria trabalhar esta parte mais têxtil, do toque, por isso algumas peças têm falha de material”. Pausa ainda para cobiçar o top lilás em estilo arnês feito em parceria com um estúdio de malhas de umas amigas. “É um universo novo que nunca tinha explorado”.
Portugal Fashion regressa esta terça-feira ao Porto com mexidas no calendário e ausências de peso
Ao pescoço, um dos acessórios que dão nas vistas nesta coleção: um colar com uma pequena estrutura de lego em forma de coração encarnado. “Foram feitos de propósito para esta coleção, arranjei-os numa loja vintage”. E para quem quer comprar tudo isto e o que mais chegar no futuro? “Vou dedicar-me a isso agora. Estou a trabalhar para abrir a loja online e encontrar algumas lojas físicas onde ter produtos disponíveis”. Aguardamos ansiosamente, Andreia.
De regresso ao Portugal Fashion, esta edição, esteve ainda Airiev, ou José Pinto, com a marca criada em 2017, com a primeira coleção com a qual concluiu o curso de design de moda da Escola de Moda do Porto. Formado em styling pela parceria Farfetch x Modatex, apresentou a coleção “Unmade” para a Para a Lo Siento. O dia reservado à plataforma Bloom fica ainda marcado pelas quatro propostas de Ingrid da Costa, que trouxe uma “The Top Hat Girl” em modo cápsula que surge do encontro imaginário entre Christian Dior e o submundo punk, com a qual encetou a tarde no Museu do Carro Elétrico. A noite encerrou com a “Infinite Blossom” de AHCOR, ou Rocha, escrito de trás para a frente, a marca de Sílvia Rocha.
O Portugal Fashion segue caminho até às últimas deste sábado, quando Pé de Chumbo encerrar as hostilidades. Até lá, um conjunto de desfiles numa edição marcada sobretudo por ausências de peso. Sem Marques’Almeida, um dos nomes mais mediáticos e internacionais do certame, ou Katty Xiomara, e com Manuel Alves a apresentar esta sexta-feira à tarde à margem do evento, a incerteza continua a pairar sobre as andanças a norte e o destinos da moda. Recorde-se que o projeto Portugal Fashion foi criado em 1995, pela Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) e ATP — Associação de Têxtil de Portugal, e era tradicionalmente financiado em 85% por fundos europeus. Com o fim do programa Portugal 2020, o evento aguarda agora o programa Portugal 2030.