O invulgar, a pluralidade cultural e o perigo dos populismos modernos marcaram o ciclo de conversas que decorreram este domingo no Folio — Festival Literário Internacional de Óbidos. O domingo de chuva trouxe menos gente à vila, num dia em que nomes como Rui Tavares, Rafael Gallo, An Yu e Pilar del Rio marcaram presença nas várias mesas, abordando para conversas sobre democracia, o futuro da literatura e o legado de José Saramago.
No final da manhã, a Tenda Vila Literária acolheu o deputado Rui Tavares e o autor italiano Antonio Scurati para uma conversa sobre política e populismos, em Portugal e no resto do mundo. Scurati, cuja biografia ficcionada de Benito Mussolini lhe valeu, em 2019, o mais prestigiado galardão literário de Itália, o Prémio Strega, identificou durante a conversa aquele que diz ser um dos primeiros focos de ataque das plataformas populistas:
Todos os populismos começam com uma forte retórica anti-parlamentar. ‘Eu sou o povo e o povo sou eu’, é o que defendem. E se ‘eu sou o povo e o povo sou eu’, este parlamento que apresenta diversas posições, propostas de vários partidos, fações, orientações e interesses, é inútil, é supérfluo, é inerte” disse.
No entender de Scurati, esta estratégia tem como objetivo “seduzir” as massas, para com isso as introduzir ao ideário populista e anti-democracia. Pegando nesta tese, Rui Tavares acrescentou: “As pessoas ficam muito impressionadas com comportamentos na Assembleia: os gritos, os insultos, saem da sala, dizem que o presidente da AR não os representa. Mas vou dizer-vos uma coisa: nem sempre é assim. Quando é necessário, nas reuniões à porta fechada, são eruditos, académicos, as pessoas mais simpáticas, tentam ‘seduzir-nos’ no corredor… aquele comportamento no hemiciclo não é um acaso”, disse o deputado do Livre.
Horas depois, no mesmo local, a presença do “invulgar” nos livros de Marta Pais Oliveira e An Yu deu o tiro de partida para uma sessão que arrancou por volta das 17h00, na qual a autora portuense, de 32 anos, e a escritora nascida na China e formada nos EUA, de 29, refletiram sobre o futuro dos livros num mundo em mudança, bem como sobre se a sua juventude e experiência de vida contemporânea confere uma “mensagem geracional” ao seu trabalho.
“É muito difícil escrever uma história, especialmente uma história chinesa, sem, de algum modo, abordar as diferenças geracionais”, começou por dizer a autora de Porco Assado (Quetzal) e de Ghost Music (ainda por editar em Portugal). Por outro lado, An Yu considerou que é igualmente importante que as suas obras não estejam “presas” a um tempo específico. “Tento ao máximo escrever histórias universais, que não sejam demasiado atuais, para que possam ser lidas daqui a 50 anos. Acho até que, ao fazê-lo, consigo falar melhor sobre a condição humana”.
Olhando para os anos e décadas que aí vêm e para um mundo que atravessa ciclos cada vez mais acelerados de mudanças culturais e tecnológicas, Marta Pais Oliveira refletiu sobre se os livros continuam a ter futuro. “Estamos num festival literário, tenho de dizer que sim. [O livro] É um espaço de recolhimento e de silêncio do ruído que nos assalta violentamente todos os dias. (…) Ler até parece uma coisa em contraciclo com esta fragmentação da nossa atenção, mas acredito que o livro resista enquanto objeto”, disse a autora.
O fim do primeiro fim-de-semana de Folio serviu ainda para colocar o foco nos “herdeiros” de José Saramago , assim descritos por Manuel Frias Martins, através de uma série de iniciativas realizadas ao longo do dia na Casa José Saramago, cujas instalações incluem ainda a Biblioteca Municipal de Óbidos.
“A sombra dos silêncios” era, à partida, o título da mesa que juntou Frias Martins, crítico literário e ensaísta, e o escritor Rafael Gallo para uma conversa na Casa José Saramago. Na prática, a abstração do tema abriu caminho a outros rumos, numa tarde que passou por assuntos como o processo criativo e a importância dos prémios literários.
“Dor fantasma” é um romance de Rafael Gallo que nasceu numa depressão e “tirou a desforra”
Gallo, autor brasileiro cujo romance Dor Fantasma lhe valeu o Prémio Literário José Saramago, em 2022, admitiu que o seu meticuloso processo de criação literária é, por vezes, fonte de frustração. “Às vezes penso nas primeiras coisas que escrevi, em que pensava mais na história, nas personagens, nas emoções, no que queria e conseguia começar com isso. Hoje sinto-me, não sei, mais adulto? Fico querendo acertar tudo antes de começar, de ter tudo planeado, como se me prevenisse de qualquer problema que possa aparecer”.
Tal deve-se, em parte, ao reconhecimento crítico, facto que o escritor, de 41 anos, admite ter constituído um fator extra de pressão. “Depois do Prémio Saramago, perguntavam-me se sentia que o prémio me ia colocar uma nova pressão. E eu falava que não, que não colocava, que na hora de escrever estava sozinho. Mas ainda não tinha vivido as coisas. Quando se começa a viver, começa a colocar algumas dúvidas”, confessou.
A encerrar o fim de semana, a iniciativa conjunta da Fundação José Saramago e do Sesc — Serviço Social do Comércio, do Brasil, organizou uma conversa descrita com ironia pelas convidadas como “um novo Tratado de Tordesilhas, com o Brasil convidado e com outros objetivos”. Pilar del Rio e Luciana Salles olharam para “a cultura no plural”, num fim de tarde que olhou para o legado histórico do colonialismo e o seu impacto na definição cultural de um país.
Pelo meio, foi anunciado que a fundação com o nome do Nobel da Literatura está a preparar para o final do ano uma exposição, como forma de assinalar os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. “O autor não fez a fundação para garantir a sua posteridade. A ele, a posteridade interessava-lhe pouco, porque costumava dizer que, um dia, tudo isto ia explodir e ia deixar de existir de qualquer maneira. Não, a fundação existe porque Saramago quis fazer um ato de partilha”, vincou a presidenta da fundação e viúva de Saramago.