Quando Vanessa Coelho-Santos, ainda criança, começou a dizer que queria ser astrofísica e trabalhar na NASA, os pais não ficaram propriamente radiantes. Os EUA pareciam um país demasiado distante e o estudo do universo não lhes parecia uma profissão para meninas, sobretudo para a única filha, embora a levassem, a seu pedido, a planetários e observações astronómicas.
“’A astrofísica não é uma profissão para mulheres.’ Ouvi isso muitas vezes em criança e adolescente. Os livros também o refletiam. Eram outros tempos e mentalidades.” Por outro lado, Arganil, onde a investigadora de 35 anos cresceu, tem menos de quatro mil habitantes e há duas ou três décadas não havia por lá muitos cientistas. A jovem estudante achava que era isso que queria ser, mas tinha muitas dúvidas que gostava de ver esclarecidas.
O primeiro contacto com cientistas chegou no 11º ano, através de um estágio do programa Ciência Viva chamado “O cancro como herança genética”. Durante duas semanas pôs-se a caminho do Instituto Português de Oncologia, em Coimbra. Foi a primeira vez que esteve num laboratório, que viu cientistas, que conversou com eles, que percebeu melhor o que faziam. E teve uma certeza: o que gostava era de desvendar o desconhecido.
Vanessa Coelho-Santos não escolheu astrofísica, mas, ainda assim, acabou por ir para os EUA. Depois da licenciatura em Biotecnologia, do mestrado em Biologia Celular e Molecular e do doutoramento em Envelhecimento e Doenças Crónicas, em Portugal, mudou-se primeiro para a Carolina do Sul e, depois, para Seattle, para fazer investigação na área cérebro-vascular.
Regressou em 2022 a Portugal para continuar o trabalho no Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional (CIBIT) do Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS) da Universidade de Coimbra. Com o projeto “Desvendar a mudança neonatal no acoplamento neurovascular: uma abordagem multimodal”, financiado pela Fundação “la Caixa”, está a tentar perceber o processo de desenvolvimento da comunicação entre os neurónios e os vasos sanguíneos.
A ideia para o projeto surgiu de desafios que vêm da prática clínica: os médicos têm dificuldade em perceber o que vai acontecer aos bebés que sofrem de hipóxia neonatal – ou sofrimento fetal. Por outras palavras, os recém-nascidos que ficam sem acesso a oxigénio no momento do parto. É uma situação em que “tempo é cérebro” porque as células cerebrais não sobrevivem sem oxigênio. Assim, quanto maior a duração do episódio, mais provável é que haja lesões ou problemas do neurodesenvolvimento no futuro, como a paralisia cerebral.
“Cerca de 20% de todo o oxigénio que inspiramos e 15-20% da glucose que ingerimos são consumidos pelo cérebro, apesar de representar apenas 2% do nosso peso corporal”, explica a cientista. Infelizmente o cérebro não tem capacidade de armazenamento da energia que necessita. “Não tem uma despensa. É como se precisasse sempre de ‘comida fresca’, e vai buscá-la ao fluxo sanguíneo.” É nos capilares sanguíneos que é feita uma troca: os neurónios recebem a energia que precisam para funcionar e despejam o “lixo” que já não é necessário.
Os meses ou anos que se seguem a estes episódios durante o parto são de grande ansiedade para os pais e de grande incerteza para os médicos. Ninguém quer ficar simplesmente à espera para ver o que acontece e uma das formas que tem sido usada para tentar perceber se há sequelas desses episódios é a ressonância magnética funcional (RMf).
Acontece que este diagnóstico precoce pode ser muito difícil. Desde logo, porque não há muitas referências: os bebés que não estão sujeitos a estes episódios e que são aparentemente saudáveis não fazem estes exames, por isso, não há muitas imagens para comparar o que é normal com o que não é. “Imagine o jogo das diferenças, aquele em que temos duas imagens e temos de colocar uma cruz nos erros que estão na segunda. Não podemos fazer isso se não há não há uma primeira imagem de referência”, diz a investigadora. É preciso saber o que é normal e expectável para depois perceber o que não é.
Mas há uma segunda dificuldade: as imagens de RMf de bebés saudáveis não têm sido uma grande ajuda. Para avaliar a atividade dos neurónios, este exame usa habitualmente uma metodologia chamada contraste BOLD (Blood Oxygen Level Dependent). “Isso significa que, na verdade, a atividade nos neurónios não está a ser medida diretamente, mas antes a ser inferida através do consumo de oxigénio”, explica a investigadora. E se nos adultos esta estratégia funciona bem, nos bebés nem por isso.
Sabe-se que tanto em murganhos (ratinhos) bebés, como em recém-nascidos humanos, pode haver atividade neuronal sem que seja possível ver esta atividade vascular.
Talvez porque os capilares sanguíneos, que é onde há essa troca, estão ainda a formar-se durante o período neonatal. Ou talvez – e esta é a hipótese que vou estudar – porque os astrócitos [células cerebrais que têm ligação quer com os neurónios quer com os vasos] ainda não estão desenvolvidos e serão responsáveis pela comunicação neurónios-vasos.”
Em termos práticos, o que decorre daqui é que a ressonância magnética funcional não consegue dar uma boa resposta às dúvidas dos médicos e dos pais quando as crianças são muito pequenas. Ora, o que Vanessa Coelho-Santos vai tentar perceber, em primeiro lugar, é a partir de que idade se desenvolve a comunicação entre os neurónios e os vasos sanguíneos, o chamado acoplamento neurovascular. “Para perceber a partir de que altura é que os vasos sanguíneos respondem à ativação dos neurónios após uma estimulação sensorial e quando conseguimos detetar essa resposta vascular através da RMf.”
Um artigo já publicado sobre este tema indica que, nos ratinhos, esta resposta se desenvolve entre os 10 e os 15 dias de vida, o que corresponde ao período neonatal até um ano de idade em humanos. A investigadora vai começar por aferir qual é o dia exato em que isto acontece. Depois, através de uma técnica de microscopia de alta resolução que permite a obtenção de imagens ao vivo ao longo do tempo, vai olhar para dentro dos cérebros dos ratinhos para perceber o que está a acontecer, a nível celular, nesse momento, tanto nos vasos, como nos astrócitos, para compreender melhor o mecanismo de formação do sistema neurovascular.
O estudo da cientista é é investigação básica ou fundamental e, por isso, o objetivo é “apenas” gerar conhecimento sobre como as coisas funcionam. Apesar disso, reconhece que das suas conclusões poderá sair uma série de informação com impacto na prática clínica, embora não no imediato. “Desde logo, ajudar a identificar em que idade vale a pena fazer uma ressonância magnética funcional a um bebé que possa ter algum valor preditivo de alterações na função.” Depois, ao perceber o processo de formação e comunicação das células do sistema neurovascular numa situação normal, é mais fácil perceber o que não está bem e onde, nos casos de doenças em que este acoplamento neurovascular fica comprometido, sejam doenças do neurodesenvolvimento, seja noutras, como Alzheimer, o Acidente Vascular Cerebral (AVC) e em certos tipo de cancro, como o glioblastoma, um tumor cerebral que afeta o sistema nervoso central.
Talvez não seja surpreendente que Vanessa Coelho-Santos, tenha assumido um papel ativo na área da comunicação científica, participando em atividades de divulgação junto de jovens, e que, até recentemente, tenha sido também vice-diretora de Comunicação da Women in Bio Seattle Chapter, uma organização dedicada a promover carreiras científicas entre as mulheres jovens.
O estágio Ciência Viva que pôde fazer no 11.º ano mostrou-lhe o valor que há em ter alguém disponível para nos tirar dúvidas quando somos jovens. E sabe também que, quase vinte anos depois, muitas mulheres continuam a ouvir dizer que há coisas que não são para elas. Ela Sente muito empenhada em poder retribuir uma coisa que lhe foi dada e em combater a ideia de que há certas ciências que não são para mulheres. “Sou muito feliz a fazer o que faço, apaixonei-me pelo estudo do desenvolvimento cérebro-cardiovascular, mas confesso que ainda hoje, às vezes, penso: como teria sido ser astrofísica?”
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI . O projeto de Vanessa Coelho Santos, da Universidade de Coimbra, foi um dos selecionados para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2022 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. A investigadora recebeu 305 mil euros por três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática.