O ministro do Ambiente e Ação Climática, Duarte Cordeiro, já tinha dado a garantia de que as tarifas da eletricidade iam subir abaixo da inflação em 2024. A secretária de Estado da Energia, Ana Gouveia, reforçou o objetivo de estabilidade nos preços e admitiu, em entrevista ao Observador, uma nova injeção de fundos públicos no sistema elétrico. Já o ministro das Finanças, Fernando Medina, confirmou, no dia da apresentação da proposta de Orçamento do Estado para 2024, que ia haver uma transferência de 366 milhões de euros para as tarifas elétricas, com especial atenção para os custos das empresas.
Apesar de todos estes sinais e garantias, a proposta da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) para a evolução das tarifas elétricas no próximo ano chegou muito tarde, quase à meia noite do dia do anúncio da proposta anual, e veio com algumas surpresas.
Eletricidade sobe 1,9% no mercado regulado em 2024. Dívida tarifária terá maior aumento desde 2010
Se o aumento proposto para a tarifa de baixa tensão de 1,9% (face aos valores em vigor atualmente) está em linha com a expectativa criada, já as medidas de política energética e financeira que foram adotadas para conter maiores aumentos vão para lá do que já tinha sido referido. A transferência extraordinária do Fundo Ambiental (dinheiro do Orçamento do Estado) foi afinal de 566 milhões de euros (divididos entre este ano e o próximo). A famosa dívida tarifária que Portugal se comprometeu a eliminar nos tempos da troika — e que tinha vindo a baixar gradualmente nos últimos anos (com exceção de um ano) — vai disparar, naquela que será a maior subida em mais de 13 anos, mais do que duplicando, devido ao adiamento do pagamento pelos consumidores dos custos em alguns contratos de produção de energia renovável e a Tapada do Outeiro. E há uma fortíssima subida das taxas de acesso às redes que passaram de negativas para positivas.
1Qual é a relevância das tarifas anuais da ERSE quando apenas um quinto dos consumidores domésticos está no mercado regulado?
Quando se olha apenas para o preço final, a fixação anual feita pela ERSE destina-se apenas aos consumidores de baixa tensão que estão na tarifa regulada e que são 947.426 num universo de 5,5 milhões de clientes. Mas a proposta anual do regulador tem implicações para todos os consumidores porque fixa também as tarifas de acesso às redes do sistema elétrico cobradas pelas comercializadoras aos clientes finais, domésticos e empresas.
Daí que a atualização proposta pelo regulador de passar das tarifas de acesso negativas, que foram fixadas no ano passado para responder à crise energética, para tarifas positivas chegue a todos os consumidores. Caberá às comercializadoras refletirem este custo nos contratos finais para 2024, e, em função da respetiva política comercial, decidir se compensam essa subida — até porque a outra componente da preço que é a energia está mais barata do que há um ano.
Ainda dentro das tarifas de acesso às redes, a ERSE que fixa a tarifa de uso geral do sistema na qual são vertidas as medidas de política energética — as estruturais como os encargos com contratos que dão aos produtores uma remuneração fixa (independente do mercado), mas também as medidas de contenção das subidas tarifárias que este ano voltaram a ser generosas com transferências de 1,2 mil milhões de euros.
2O que explica esta necessidade de medidas musculadas quando os preços da eletricidade estabilizaram a um nível significativamente mais baixo do que o pico do ano passado?
Pode parecer um contra senso, mas foi a descida acentuada, e não prevista há um ano, nos preços do mercado grossista da eletricidade que está na origem das medidas de contenção adotadas este ano.
No ano passado, a escalada do preço no mercado elétrico, muito empolado pelo gás natural (o que levou Portugal e Espanha a aplicarem o teto ibérico) teve um efeito positivo nos custos do sistema elétrico nacional. Isto porque uma grande parte da energia que é comprada para abastecer o nosso mercado tem um preço contratual pré-definido e que, nas circunstâncias do ano passado, estava abaixo dos preços de mercado. Esta produção, que envolve centrais eólicas e unidades de cogeração e a Tapada do Outeiro, central a gás que tem um contrato de aquisição de energia até 2024, deu um sobreganho ao sistema que ajudou a conter e estabilizar os preços. Funcionou como uma espécie de seguro face à instabilidade internacional e explica porque Portugal estava mais tranquilo que Espanha.
O contributo foi positivo, mas não chegou para travar o aumento dos preços da energia, sobretudo para os clientes industriais que não estão expostos a estes contratos. Esta situação levou o Governo e o regulador a aprovarem ainda em 2023 transferências financeiras para as tarifas de acesso às redes, que passaram de positivas para negativas, de forma a acomodar o agravamento da parte da fatura relativa à energia. Foram assim os clientes industriais os principais beneficiários das medidas aprovadas no ano passado.
Foi no pressuposto da continuidade deste cenário de alta dos preços do gás natural (e da eletricidade) que a ERSE desenhou a proposta de tarifas para 2023. Mas não foi isso que aconteceu. “O preço da energia elétrica observado no mercado grossista no primeiro semestre de 2023, apesar de ainda elevado, revelou-se muito inferior ao previsto em dezembro de 2022, situação que originou um desvio de receitas a recuperar nos exercícios tarifários durante 2024”, explica a ERSE.
Apesar da situação ter sido corrigida no segundo semestre — com uma atualização extraordinária que elevou as tarifas de acesso à rede — a recuperação do desvio gerado na primeira metade do ano deu origem a um aumento de proveitos (por parte dos produtores que têm um preço garantido acima do mercado) que teria “um forte reflexo na estabilidade tarifária de 2024”. Dito de outro modo, obrigaria a uma forte subida dos preços da eletricidade em 2024. Para o evitar, o regulador propôs a “transferência intertemporal, pelo prazo de cinco anos, de alguns custos de interesse económico geral, em especial do diferencial de custos com a PRG (produção com remuneração garantida)”.
Com esta decisão, diz a ERSE, “promove-se uma maior estabilidade dos preços finais pagos pelos consumidores, procurando evitar-se variações tarifárias contraditórias, com subidas acentuadas neste ano (em 2024) e descidas no seguinte. Em 2025, sai do sistema de preços garantido a principal central térmica do país — a Tapada do Outeiro — cuja exploração será colocada a concurso.
3Porque volta a subir a dívida tarifária da eletricidade?
O aumento da dívida tarifária da eletricidade é uma consequência direta da proposta da ERSE de atirar para a frente o pagamento de 1,7 mil milhões de euros de custos devidos aos produtores com preço garantido. A dívida vai subir mais de mil milhões de euros para 1,995 mil milhões de euros já depois de contabilizado o efeito da amortização de 600 milhões de euros em 2023.
Apesar de este ser o maior aumento da dívida tarifária desde 2010, a ERSE justifica esta opção: “A geração de nova dívida tarifária em 2024 não refletirá, contudo, uma menor sustentabilidade do setor elétrico a médio prazo. Assim, apesar da instabilidade geopolítica atual, considera-se que, salvo situações disruptivas, a resposta europeia dada à crise energética, decorrente da guerra na Ucrânia, reduz, à partida, a possibilidade de repetição desses impactes no médio prazo.” E uma dessas respostas foi o mecanismo ibérico que travou os preços da eletricidade no mercado ibérico (por via do gás natural), mas também as reformas que estão a ser preparadas no mercado europeu. Outro fator apontado como mitigador é o aumento crescente do peso da energia renovável no sistema que, desde que seja vendida a preços de mercado ou fixados em leilão competitivo, ajudará a puxar para baixo os preços de toda a energia.
Ainda assim, a dívida tarifária representa custos futuros para o sistema, isto porque o seu reembolso envolve o pagamento de juros que recaem sobre todos os consumidores da eletricidade.
4Afinal quanto dinheiro público foi injetado nas tarifas elétricas? E como é financiado?
As tarifas de acesso às redes para 2024 foram alvo de injeções de 1,2 mil milhões de euros. Cerca de metade — 634 milhões de euros — resulta de receitas que são tradicionalmente (e em alguns casos por lei) mobilizadas para a eletricidade. A mais relevante são as receitas obtidas nos leilões de licenças de CO2 (autorizações para as empresas industriais produzirem emissões). Entram ainda uma parte dos impostos cobrados sobre o petróleo e o produto da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) que é paga pelas grandes empresas energéticas.
A outra metade, cerca de 566 milhões de euros, vem do orçamento do Fundo Ambiental e é considerada uma medida extraordinária na medida em que tem de ser autorizada por despacho pelo Governo e alvo de inscrição orçamental. Segundo explicou ao Observador fonte oficial do Ministério do Ambiente e Ação Climática, este valor divide-se em: “200 milhões de euros ainda em 2023, com contrapartida na dotação orçamental não utilizada do regime transitório de estabilização de preços do gás por pessoas coletivas com consumos superiores a 10 mil m3 para o Sistema Elétrico Nacional, e 366 milhões de euros em 2024, com contrapartida no reforço com origem no Orçamento do Estado para 2024.”
Gás natural mais barato que o previsto dá folga que pode ir até 900 milhões nas contas públicas
Os 566 milhões de euros serão deduzidos à tarifa de uso global do sistema com efeitos nas tarifas do próximo ano. O grosso desta transferência, no valor de 500 milhões de euros, tem como destinatário as empresas Ou seja beneficia os clientes de muita alta tensão, alta tensão, média tensão, baixa tensão especial e baixa tensão normal acima do 20,7 kVA (potência contratada). Os restantes 66 milhões de euros beneficiam as tarifas dos domésticos.