A nova realização de David Fincher, O Assassino, livremente adaptada da série de banda desenhada francesa The Killer, de Matz (Alexis Nolent) e Jacamon (há alguns álbuns editados em Portugal pela ASA e pela Booktree) e produzida pela Netflix, pode ser vista como o Seinfeld dos filmes sobre assassinos profissionais solitários: é (aparentemente) sobre nada. Resume-se num ápice: um homem no topo da sua profissão comete um grave erro na execução de um trabalho e vai remediar as graves consequências advindas dele. Ou seja: não consegue eliminar um alvo, a namorada é vítima de uma tentativa de assassínio como represália pelo falhanço e ele parte em busca dos responsáveis para os matar (entre eles, há dois outros assassinos, ocupando lados opostos da hierarquia do ofício, um grunho tatuado e brutal, e uma mulher distinta e gastrónoma).

Interpretado por Michael Fassbender com uma impassibilidade quase pétrea, o Assassino (nunca sabemos o nome da personagem) tem uma filosofia de vida e profissional rigorosa, inflexível e amoral, que vai sendo revelada pelo próprio em “off” ao longo da história e que cumpre rigorosamente, sem uma hesitação, um escrúpulo, uma intromissão da consciência que seja, enquanto esclarece sobre alguns aspetos do seu mister. O aborrecimento é a pior parte; não se deve ter nem pinga de empatia; o ioga é essencial para quem passa muito tempo à espera no mesmo sítio e com escasso conforto (a primeira meia hora do filme decorre no escritório vazio, plúmbeo e frio alugado pelo Assassino do outro lado da rua de Paris onde se situa o hotel em que o seu alvo se vai hospedar); e há que escolher bem a música que se ouve enquanto se espera e quando se dispara (os Smiths são os eleitos dele).

[Veja o trailer de “O Assassino”:]

O Assassino diz também que ser matador de elite dá um trabalhão e exige enorme disciplina e cuidado. Não é só apontar uma espingarda sofisticada a uma pessoa, matá-la e ir para casa. Há que não deixar o menor indício e andar sempre com desinfetante em “spray”, passar o tempo a destruir telemóveis por causa da pegada digital, ter armazéns alugados em várias cidades para guardar armas, munições, dinheiro, ferramentas, documentos e matrículas falsas, ou ainda caixotes do lixo para meter cadáveres e latas para as cabeças dos ditos, e gerir uma coleção de passaportes forjados e cartões de crédito com identidades várias (o Assassino gosta de nomes de personagens de séries de TV clássicas, como George Jefferson ou Lou Grant).

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[Veja David Fincher falar sobre “O Assassino” no Festival de Veneza”:]

David Fincher documenta esta meticulosa labuta da personagem, seguindo-a de aeroporto em aeroporto, de país em país, de uma empresa de aluguer de carros para um supermercado e um ginásio, esmiuçando toda a fastidiosa rotina de preparação, recolha de informação e captação de dados por detrás do seu périplo de vingança, usando tudo como tijolos na construção do “suspense”, e entrecortando-a com as sequências de ação e violência. Uma delas é fulgurantemente filmada de noite, numa casa onde o único foco de luz provém de uma enorme televisão de parede em que passa um programa de jardinagem, enquanto o Assassino e um brutamontes se moem de pancada um ao outro.

[Veja um momento do filme:]

Reminiscente de obras como Ofício de Matar, de Jean-Pierre Melville, O Assassino é um filme contido, sisudo, parcimonioso e “cerebral”, onde tudo o que antecede e conduz à ação é tão importante como esta (não fazia ideia de que se podia comprar na Amazon um aparelho que reproduz cartões eletrónicos para abrir portas ou cacifos – a tecnologia tornou os criminosos auto-suficientes e dispensou os “gangs” em que cada membro tinha uma função específica). E que se conclui num anti-clímax que faz todo o sentido em termos da lógica de comportamento da personagem de Fassbender. Matar uma figura pública e célebre na sua área é chamar para si uma atenção totalmente indesejada. Por isso, em vez de um balázio, deixa-se um aviso.

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“O Assassino” consegue envolver-nos de tal forma nos trabalhos, na conversa e nos atos do seu protagonista, puxar-nos para dentro do seu mundo e entreter-nos com a minuciosa descrição do seu profissionalismo com gelo no coração e um manual de instruções na cabeça, que esquecemos as improbabilidades, coincidências, absurdos e situações feitas (há sempre a porta de uma garagem sem vigilância que demora muito tempo a fechar, um entregador de encomendas que surge na altura providencial para se conseguir entrar num prédio, e a insofrível Tilda Swinton faz a assassina distinta). É um filme todo ele pose e estilo, lustro e superficialidade. Mas pose, estilo, lustro e superficialidade com a assinatura de David Fincher é outra loiça.    

(“O Assassino” estreia esta quinta-feira, 26 de outubro, nos cinemas, e dia 10 de novembro na Netflix)