Quando é que a ideia utópica da expressão “amor e uma cabana” se esfuma? O timing pode ser diferente para toda a gente, mas sabemos que se esfuma. A vida real não é um filme da Disney (e já nem esses são assim tão ingénuos) e a evidência, mais cedo ou mais tarde, cai-nos em cima.
Agora, vamos tentar por-nos na pele dos protagonistas de Fellow Travelers, a nova minissérie da SkyShowtime. Têm a tarefa infinitamente mais dificultada tendo em conta que são dois homens, gays, que se conhecem nos anos 50 nos EUA. No meio de uma festa para a eleição do presidente Dwight D. Eisenhower, Hawkins “Hawk” Fuller (Matt Bomer) e Tim Laughlin (Jonathan Bailey) cruzam olhares e dão início a uma história de amor, vergonha, traição, desejo e escolhas terríveis que se estendem por mais três décadas. Esperar um final feliz para ambos é mais ou menos como achar que é possível encontrar uma agulha num palheiro. Literalmente.
Ainda assim, as oito horas (sobretudo as primeiras cinco) desta história — baseada no livro de 2007 de Thomas Mallon e adaptada para o streaming por Ron Nyswaner (Segurança Nacional, Filadélfia) — são cativantes, complexas e magnéticas, beneficiando do facto de a ficção estar enquadrada por acontecimentos verídicos.
[o trailer de “Fellow Travelers”:]
O trunfo está nas duas personagens principais que, nunca o imaginando à partida, vão passar uma vida inteira dependentes uma da outra, mesmo que longe fisicamente na maioria do tempo. Hawk é veterano de guerra, funcionário do governo e um dos solteiros mais cobiçados da cidade. Carismático, solitário e focado em subir na carreira, vai preenchendo as necessidades sexuais em casas de banho públicas e bares clandestinos sem nunca pretender um envolvimento emocional com ninguém. Entra em cena Laughlin, o oposto completo. Jovem, ingénuo, idealista, profundamente agarrado à fé e a Deus, cede à atração por Hawk mas nunca se liberta da culpa (é pecado, ilegal, imoral). O primeiro aproveita para arranjar ao segundo um emprego como assistente do senador Joseph McCarthy (figura real que levou a cabo uma perseguição a comunistas e homossexuais, interpretado por um irreconhecível Chris Bauer, de The Wire e The Deuce), podendo assim obter informações confidenciais que lhe interessam e conquistando pelo caminho uma devoção cega do outro.
Nos primeiros capítulos (Há um novo todas as sextas-feiras), Fellow Travelers vai saltando entre 1952 e 1986. É neste ponto, aliás, que a minissérie começa. Um envelhecido Hawk está prestes a mudar-se para Itália, onde terá o cargo que sempre desejou. Em São Francisco, em plena epidemia de sida, Tim está a morrer e tenta deixar os seus assuntos arrumados, sendo Hawk o maior deles.
O primeiro momento temporal é, sem dúvida, o mais cativante. Enquanto Tim — ou Skippy, a alcunha que Hawk lhe dá logo no início — vive atormentado pela culpa dos desejos que não consegue controlar, Hawk não demonstra qualquer remorso e é perito na vida de fachada. “Todos temos algo a esconder”, diz simplesmente a dada altura. No governo está lançada uma autêntica caça às bruxas e há um departamento específico onde as denúncias de homossexuais são analisadas ao ponto de pedirem a quem está a ser interrogado para andar pelo gabinete ou ler passagens de um livro com o objetivo de testar a masculinidade. Acrescenta-se a isto casas revistadas, gavetas reviradas e hábitos escrutinados. A maioria não hesita em empurrar quem ama para a frente de um autocarro para evitar que as atenções recaiam sobre si. Não quer dizer que o amor não seja genuíno, mas é a lei da sobrevivência.
Hawk e Tim vão mudando profundamente, e com eles a ligação que partilham, ao longo das décadas. O primeiro é o macho alfa que se protege com mentiras porque não há alternativa, mas que continua a viver com uma máscara, mesmo quando já não precisa dela. O segundo vai ficando um homem seguro, com convicções claras e objetivos. Os dois perdem-se para se reencontrarem vez atrás de vez, sempre com a mesma paixão. Há muitas cenas de sexo, mas os momentos nunca parecem forçados, já que até a dinâmica sexual de ambos vai sofrendo alterações, refletindo a evolução pessoal de cada um.
Matt Bomer, que também é produtor executivo, monopoliza as cenas com um Hawk que não nos deixa desviar o olhar (e não é pelos fatos impecáveis ou o cabelo de Ken). É enigmático mas seguro, duro mas empático. Já Jonathan Bailey está muito longe de lorde Anthony Bridgerton (da série Bridgerton) — sim, ninguém o reconheceria, mas é o mesmo ator. É a personagem que nos guia pela frustração, a devoção, a raiva e a aceitação. É uma interpretação irrepreensível de um homem que demora muito a conhecer-se a si próprio, mas que chega lá, faz o círculo completo.
Além dos dois, há personagens secundárias que expõem as dificuldades de se gostar de pessoas do mesmo sexo numa década de regras, famílias perfeitas e o mítico sonho americano. Como aceitavam (ou não) quem eram, como o viviam ou escondiam, as lutas que travavam ou os compromissos que faziam para poderem ter uma vida minimamente pacífica e normal sem serem apontados como uma aberração.
Marcus Hooks (Jelani Alladin) é um jornalista afro-americano que já tem de lutar por um lugar numa sociedade ainda profundamente racista que se apaixona por Frankie Hines (Noah J. Ricketts), artista, drag queen, livre. A dinâmica dos dois é complexa e mostra, mais uma vez, que o amor nem sempre é suficiente. Roy Cohn (Will Brill) é adjunto de McCarthy, gay mas nunca assumido, é um dos atacantes mais implacáveis da comunidade homossexual. E depois temos as mulheres. Secundárias, certo, mas muito importantes para contribuírem com um ponto de vista diferente. Mary Johnson (Erin Neufer), secretária de Hawk e ela própria culpada de uma decisão egoísta que lhe altera a vida toda, e Lucy Smith (Allison Williams), a mulher com quem Hawk se casa para esconder quem realmente é. De burra não tem nada, apenas escolhe o que quer e não quer ver em prol dos sonhos que tem para a sua vida.
A história passa ainda pela guerra no Vietname antes de chegar à propagação do VIH e à revolta e aos protestos da comunidade. A minissérie dispersa-se um pouco nos últimos episódios, querendo chegar a todo o lado, mas volta a recentrar-se a tempo do final. Os capítulos pecam por serem demasiado longos (cerca de uma hora cada) e há um salto temporal de 11 anos que torna o sexto episódio pouco coerente no meio de um quadro geral consistente. Tirando isso, Fellow Travelers revela-se uma aposta segura da SkyShowtime — que já contribuiu para 2023 com a elogiada Poker Face — e é uma poderosa (e trágica) história de amor embrulhada nos erros irrecuperáveis feitos pela vida fora. Se podia ter tido um final diferente? Não, porque “amor e uma cabana” é um conceito impossível de existir.