“Neste ano, nós temos o el Niño, que normalmente já provoca um aumento de chuva na região sul [do Brasil] e a redução das chuvas na região norte e nordeste. O aquecimento atípico do Oceano Atlântico tem feito com que os efeitos desse el Niño sejam mais pronunciados do que o usual”, explicou à Lusa Pedro Luiz Cortês, professor do Instituto de Energia e Meio Ambiente da Universidade de São Paulo (USP).

Estados brasileiros que têm nos seus territórios grandes áreas da maior floresta tropical do mundo, como o Acre, o Amapá, o Amazonas e o Pará, tiveram os menores índices de chuva desde 1980 entre os meses de julho e setembro, elevando o alerta para o problema da falta de chuva.

Cortês acrescentou que o desflorestamento da Amazónia também colabora para o cenário de seca na região, porque a destruição da vegetação faz com que haja uma redução da humidade na floresta.

“Então, essa conjunção de três factos tem provocado essa situação de seca na Amazónia”, pontuou.

A seca que assola a Amazónia causa problemas variados para a população que está com acesso restrito a itens básicos como alimentos e água potável, já que os rios são fundamentais para o transporte desses itens na região.

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A escassez de água também tem efeitos trágicos nos animais do bioma e já provocou a morte de golfinhos e milhares de peixes.

Cerca de 130 botos cor-de-rosa [espécie de golfinho nativo do Brasil] foram encontrados mortos no Lago Tefé, no estado do Amazonas no fim de setembro. Os cientistas suspeitam que o aquecimento da água pode ter causado a proliferação de bactérias que mataram os animais.

“É uma floresta que depende muito do ciclo natural das águas. Quando há uma redução drástica neste ciclo, isso acaba tendo um impacto não só na mortandade de botos e de peixes, mas também começa a prejudicar as aves que se alimentam desses peixes. Isso vai prejudicando toda a cadeia alimentar natural da selva”, frisou Cortêz.

O diagnóstico sobre as causas dessa seca histórica na região que concentra a maior reserva de água doce do mundo também é corroborado por Rodolfo Salm, doutorado em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia e professor de Ecologia na Faculdade de Biologia na Universidade Federal de Pará.

Salm alertou, porém, que apontar o el Niño e outros fenómenos climáticos que acontecem sem ação direta humana como responsáveis pelo problema da seca na região amazónica sem falar de aquecimento global seria parte de uma estratégia negacionista face às mudanças climáticas.

“Devemos enfatizar muito o papel do efeito estufa no que está acontecendo. Todos os cientistas do clima observam mudanças profundas nos padrões climáticos e ambientais. Nesse ano de 2023 ninguém entende exatamente porque é que houve um salto tão abrupto [dos efeitos do el Niño] em relação aos anos anteriores”, pontuou.

“Esse foi um ano de rutura, inclusive a diminuição do gelo na Antártica e outros parâmetros. Houve o registo de recordes de temperatura em todo o planeta,” completou.

O professor da Universidade Federal do Pará destacou que, embora dados oficiais apontem que mais de 80% da floresta amazónica estaria preservada no Brasil, uma grande percentagem dessa floresta considerada intacta já está degradada em vários níveis.

“A degradação florestal é um fenómeno muito mais extensivo do que o próprio desflorestamento. É muito grave e se alastra numa área muito extensa da Amazónia. É muito difícil de se medir, porque imagens [de satélite] às vezes não captam o problema”, avaliou Salm.

Nem a chegada da temporada de chuvas na região, que acontece entre novembro e março, desperta algum otimismo entre os especialistas sobre a reversão do problema, já que o Brasil ainda estará sob os efeitos do el Niño até abril e a previsão é que as chuvas sejam menos intensas do que o necessário.

Além disso, imagens de brasileiros pedindo ajuda para obter alimento ou para se locomoverem nas zonas afetadas, onde agora há um solo seco e quebradiço que se assemelha ao solo de áreas muito áridas, geram temores de que o chamado processo de desertificação da Amazónia já esteja em curso e que problemas causados por fenómenos climáticos mais intensos como o el Niño podem acelerar ainda mais esse processo.

A falta de chuva também tem sido apontada como causa da subida dos registos de incêndios florestais, que vinham diminuindo desde janeiro, fruto de mudanças na gestão da política ambiental adotada pelo governo do Presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.

No estado do Amazonas, milhares de focos de queimadas deixaram Manaus, a maior cidade da região norte do Brasil, sob uma espessa camada de fumaça durante dias, em setembro, problema que chegou a paralisar o transporte fluvial, além de causar danos à saúde da população.

Segundo dados do sistema Deter do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), instituição governamental que faz monitorização diária por satélite dos focos de incêndio na Amazónia, o número de queimadas no período de julho a setembro caiu para 5.318 incidentes face ao registo de 7.031 queimadas identificadas no mesmo período do ano anterior.

Embora o número de focos de calor na floresta aponte para uma queda face a 2022, cientistas e especialistas alertam que, este ano, o fogo está a ultrapassar os limites de áreas desflorestadas, espalhando-se por zonas mais húmidas, o que afeta a capacidade de o bioma se recompor naturalmente.