Braga quer ser uma ilha. Pelo menos, essa é a vontade da Capital Portuguesa da Cultura 2025 para os próximos dias de Utopia (2 a 12 de novembro), festival literário que se materializa a partir e para lá do livro, conjugando realidade, ficção, pensamento político, passeios literários, exposições, concertos e mais de cem convidados a debater novas possibilidades de habitar e imaginar o mundo.
Dessa centena de nomes – que vão da escritora russa Ludmila Ulitskaya (11 nov.) ao ensaísta francês Gilles Lipovetsky (11 nov.), de Miguel Esteves Cardoso (5 nov.) a Afonso Cruz, autor de uma encomenda inédita a ser apresentada nos dias 3 e 4 de novembro – Frederico Lourenço e Ricardo Araújo Pereira foram os eleitos para a sessão inaugural do evento promovido pela The Book Company (parte integrante do grupo editorial Penguim Random House).
O primeiro é “um homem que traduz diretamente do latim e do grego”; o segundo, alguém que teve um ano de latim e que decorou as desinências valendo-se da canção popular Machadinha. Ricardo Araújo Pereira usa a depreciação para atiçar o riso da plateia, mas Frederico Lourenço eleva-a, puxando Aristóteles para a conversa e assegurando que, no pensamento do filósofo da Grécia Antiga, a comédia era considerada a obra e o trabalho mais difícil de todos.
Assim se arrancaram os primeiros aplausos espontâneos da noite, já depois dos discursos protocolares de Paulo Ferreira, diretor do Festival Utopia, e de Ricardo Rio, presidente da Câmara Municipal de Braga e da assinatura de um acordo intermunicipal com os festivais Lisboa 5L e Fólio (Festival Internacional de Óbidos), visando a concretização de projetos comuns em torno dos livros. O objetivo, realçou o autarca, é que mais municípios e festivais se juntem a este trio que sonha uma espécie de comunidade perfeita alicerçada na literatura e nas artes.
A perfeição, escutando as palavras de Frederico Lourenço e Ricardo Araújo Pereira, parece conceito fadado ao insucesso desde o início dos tempos. O humorista, líder de audiências com o programa Isto é Gozar com Quem Trabalha, e o ensaísta, poeta e professor de Estudos Clássicos, que traduziu diretamente do grego a Ilíada de Homero, a Bíblia (projeto iniciado em 2016 e do qual ainda faltam lançar dois volumes) e os Evangelhos Apócrifos, visitaram a Grécia Antiga para nos mostrar que tudo aquilo que julgámos ser invenção já o era no tempo de Horácio (de quem Frederico Lourenço está a traduzir a poesia completa, a primeira edição a ser compilada em Portugal desde o século XVII, tudo isto na Quetzal).
“A ideia de uma ilha em que as pessoas vão viver numa sociedade ideal aparece nos poemas de Horácio”, referiu Lourenço, para fazer notar como Thomas More repetira ideias da antiguidade clássica da mesma forma que o Homem moderno repete guerras e pazes já antes consumadas. A partir desta observação, foi-nos inevitável questionar se fora isso que António Guterres quisera dizer no seu discurso no Conselho de Segurança da ONU do passado dia 24 de outubro, quando afirmou que os ataques do Hamas a Israel não surgiram do nada.
Os elos da História, unidos por factos interdependentes entre si, dizem-nos, por exemplo, que a questão de Israel e de Gaza já estava presente no Antigo Testamento, “em termos muito parecidos com o que temos visto agora”, prosseguiu Frederico Lourenço, saltando para a frente e para trás na cronologia com a liberdade literária de um Gabriel García Marquez e o rigor académico que lhe é reconhecido. O professor da Faculdade de Letras Universidade de Coimbra fez questão de trazer Aquiles, “o herói com mais lucidez sobre o que é a estupidez e a inutilidade da guerra”, para o palco do Theatro Circo, parafraseando a reflexão do guerreiro de Ilíada: “Para quê combater se os cobardes e os heróis morrem?”
O humor foi-se então instalando na conversa, arte que o autor de Utopia dominava com o mesmo virtuosismo com que dominava a escrita. “Ao que se diz, as últimas palavras de Thomas More antes de ser decapitado por ordem de Henrique VIII, foram para pedir ajuda ao carrasco para subir [ao palanque]. ‘Não se preocupe que eu depois desço sozinho’”, citou Ricardo Araújo Pereira, defensor de uma democracia e política “chã, dessacralizada”, onde é possível rir de quem governa.
Mas o riso tem má reputação desde os escritos bíblicos, desde o riso de Sara perante a revelação de Deus de que ela, aos 90 anos, iria ter um filho de Abraão. “Ela ficou tão preocupada de ter sido apanhada a rir que preferiu mentir”, notou Ricardo Araújo Pereira, que recentemente foi alvo de uma queixa-crime por ter parodiado o comentário feito pelo Presidente da República ao decote de uma mulher, aquando a visita do Chefe de Estado ao Canadá. “O nosso planeta é mais adequado às lágrimas do que ao sorriso”.
No Novo Testamento, Jesus nunca se ri. Apenas o faz no Evangelho de Judas, um dos evangelhos apócrifos traduzidos por Frederico Lourenço que oferecerem um olhar mais completo e crítico sobre os quatro evangelhos canónicos (Mateus, João, Marcos e Lucas). Focando-se nas palavras, não de uma perspetiva teológica, mas sim estudiosa, o professor distinguido com o Prémio Pessoa 2016 puxou do Evangelho de Tomé para lembrar a uma plateia esgotada que foi lá que apareceu de forma inédita a palavra “discípula”, proferida por Salomé, dando a entender “que as mulheres podiam estar em igualdade de circunstância com os homens”.
Já o Evangelho de Maria Madalena – descoberto no século XIX, mas apenas publicado em 1955 – sugere que entre os primeiros grupos de cristãos, antes do cristianismo se ter tornado a religião oficial do Império Romano, houvera alguns liderados por mulheres. Mulheres que nem Thomas More poupou na sua sociedade perfeita de Utopia, punindo o crime de adultério com escravatura. Nesse ponto, embora diferisse no castigo, o filósofo estava alinhado com o seu carrasco, Henrique VIII, o que não deixa de ter um pérfido toque humorístico.
Durante uma hora farta, ouviu-se Frederico Lourenço e Ricardo Araújo Pereira a falar, no fundo, do que nos move enquanto humanos, de abusos que se repetem, do perigo de legitimar doutrinas ou religiões supostamente certas em detrimento de outras supostamente erradas. Falaram disso tudo levando-se tão a sério quanto a brincar, pondo a palavra no centro da reflexão, com todas as ambivalências e ironias que ela contém.
Continuaremos a provar-lhe o gosto – à palavra – nos próximos dias, seja no espetáculo multidisciplinar O que a chama iluminou, de Afonso Cruz (3 e 4 de nov., 22h e 21h30), na conversa sobre os territórios do humor entre Bruno Nogueira e Filipe Melo (4 nov., 15h), nas entrevistas ao filósofo alemão Martin Puchner (4 nov., 18h) ou a Miguel Esteves Cardoso (5 nov., 16h). Esperemos que elas nos deem uma boa digestão, pegando na oração de Thomas More. O mundo precisa de coisas boas para digerir e talvez algumas delas caibam no Utopia.