É um sonho partilhado, suspeito, por muitos escritores: um dia, fazerem o transvase para a música. Leonard Cohen foi dos poucos a consegui-lo, quando migrou, já nos trintas e escritor respeitado, para as canções – e com admirável coerência. Na poesia, nos temas, na voz que ainda não podia sair dos livros por limitação tecnológica do suporte, mas já os leitores ouviam soltar-se daquelas histórias e daqueles versos, entre a escatologia e a majestade.
É a esses anos distantes, antes do Cohen músico, que nos leva Um Balé de Leprosos, publicado agora pela Relógio de Água, um ano depois da edição canadiana: um conjunto que reúne e apresenta ao público, pela primeira vez, o romance que dá título à coletânea, escrito antes de Belos Vencidos ou O Jogo Preferido, seguido por 15 contos e uma história final, Comércio, que a editora Alexandra Pleshoyano identifica como “guião”.
“Tu podes falar muito, poeta, com os teus livrinhos obscuros, densos como florestas, cheios de peitos e coxas. Isso mesmo, senhor Moralidade, prega-me lá um sermão”, desafia a personagem Herb ao sujeito do segundo conto. “A diferença”, diz o outro, “entre o meu material e o teu é que os meus peitos e as minhas coxas são atravessados por sangue e músculos e estão ligados a corpos humanos dotados de vida, corpos que pensam, amam e odeiam.”
É difícil não ver o rosto do próprio Cohen nestas personagens. “Vislumbrei o reflexo da minha cara ao espelho”, diz duas linhas abaixo, como para nos dissipar a dúvida sobre qualquer hipótese de coincidência. É um Cohen ainda algo imberbe, como o da fotografia na capa, mas, como em certos raros autores (Bukowski vem à memória), um daqueles que parece ter caminhado ao contrário da espécie, do desencanto para a luz.
Título: “Um Balé de Leprosos”
Autor: Leonard Cohen
Tradução: Frederico Pedreira
Páginas: 272
Andam por aqui homens e mulheres vulgares, velhos, feios e aleijados, quartos fétidos, lares podres e tristes fantasias. Gente que se persegue e tortura pelo prazer de não ser o mais pequeno na cadeia alimentar, ódio e desesperança. Mas, em tudo isto, descobrimos quão antigo era o amor de Cohen pela imperfeição, pela fraqueza, pela condição verdadeiramente humana. Autor e personagens nunca são observadores diante do espectáculo do mundo, por mais deprimente que o vejam; fazem parte dele, são pequenos, às vezes rasteiros, sempre reais. O “balé de leprosos” não é menos do que a existência, a dança disforme, o combate não poucas vezes violento e cruel, o sexo às vezes resignado, às vezes medonho, às vezes misericordioso, outras vezes miraculoso, triunfal, mas sempre, sempre o encontro dos corpos habitados por almas mais ou menos distantes da pureza de que, um dia inicial, caímos.
Nestas histórias, escritas fundamentalmente na segunda metade dos anos 50, quando Cohen não teria mais de vinte e poucos anos, a beleza pode ser “terrível e repugnante” e encontrar-se amor e consolo na dor ou na humilhação. Pode-se odiar, pode ser-se cruel sem piedade, mas a salvação nunca é procurada senão no outro: num amor, num parceiro para o jogo do sexo, numa vítima, no velho demente que dizem ser-nos parente. Num pequeno gesto de encontro que nos salve de viver e morrer sozinhos, como quando calibramos a respiração pela do corpo ao nosso lado. E em tudo isto, examinando de longe ou perto, sempre pressentida a hipótese de um Deus, talvez sádico, talvez paternal, atrás de todas as coisas.
É estranho, como diz o posfácio, que estas histórias tenham sido rejeitadas, ao tempo, para publicação; afinal, Cohen já tinha escrito e publicado outros títulos com sucesso. Mas até esse pormenor nos aproxima agora, sete anos depois da morte do autor, da sua imperfeita, magnífica, humanidade. No fim de contas, esta busca pela pureza, esta tesão pelo decadente, não teriam a mesma importância se fossem fáceis de entender.