Um ano depois de ter promovido uma segunda edição de Design e Mal-Estar (1998) pela editora Orfeu Negro, o Atelier Daciano da Costa vem recolocar em evidência, com este livro com a chancela Tinta da China, o desempenho daquele designer de mobiliário e equipamento no Centro Cultural de Belém, inaugurado em 1993 por Aníbal Cavaco Silva, no início da primeira presidência portuguesa do Conselho das Comunidades Europeias.
O complexo do CCB constitui — importa dizê-lo preto no branco — o único espaço de representação nacional, com a dignidade e a qualidade exigidas, que o Estado português construiu desde a sua adesão a grandes instituições internacionais contemporâneas e o alargamento diplomático na era pós-1974, e também aquele — e creio que não há nem haverá outro — que se possa comparar à excelência do edifício-sede da Fundação Calouste Gulbenkian, construído três décadas antes e ao qual o próprio Daciano da Costa (1920-2005) dera um contributo muito relevante, como este livro não deixa de fazer notar, tanto nas suas linhas como nas suas entrelinhas. Revisitado vezes sem conta pela historiografia o complexo da FCG, o do CCB não merece menos atenções, e não me refiro aqui aos imbróglios criados — e sucessivamente recriados — pelo seu museu de arte contemporânea ao longo dos anos e ainda sem fim à vista.
Título: “O CCB por Daciano da Costa. Design de equipamento e mobiliário”
Autor: João Paulo Martins
Editores: Tinta da China, Atelier Daciano da Costa e Centro Cultural de Belém
Páginas: 197, edição bilíngue
João Paulo Martins, arquiteto, professor e historiador de arquitetura e design, integrou a equipa do Atelier também neste projeto, e está portanto habilitado como ninguém para comentar tudo isto, aliás como já havia feito, em especial no volume comemorativo dos 25 anos do Centro Cultural de Belém, em que publicou o ensaio O design de Daciano da Costa. Diversidade e eclectismo: um momento de viragem. Embora não seja referido, nenhum leitor deste livro deverá dispensar a sua leitura — complementar sim, indispensável certamente — para aprofundamento do tema, muito embora, pela abundância de esquissos, outra documentação projetual e portefólio fotográfico, Daciano da Costa e o CCB passe a ser a principal obra de referência sobre o assunto, a que, aliás, o texto também em inglês vem facilitar a circulação internacional, agora que peças do autor ganharam representação em famosos museus de design.
Duas epígrafes, com excertos de entrevistas do designer, em 1993-94, uma delas ao arquiteto Manuel Graça Dias, clarificam perfeitamente o sentido da sua intervenção junto de Vittorio Gregotti e Manuel Salgado: “Resolver discretamente alguns problemas projetuais complexos da ambientação de funções complexas muito específicas […] porque não havia lugar para intervenções marcantes — digamos, personalizadas — nos ambientes interiores, onde prevaleceram os grandes gestos arquitetónicos que estruturam a sua imagem” (p. 11); “não me foi difícil compreender a ordem profunda do projeto de arquitetura e resolver o projeto dentro dessa orientação geral. Há uns gestos antecipados de um projeto de arquitetura que estabelecem o registo em que os outros projetistas devem participar […] aqui ou acolá um móvel mais evidente do que outro, mas sempre no sentido de acentuar a função e acentuar a própria conceção do arquiteto. O que não diminui nada um designer, ao fim e ao cabo. É um papel que eu gosto de assumir frequentemente e que me tem acontecido com muitos arquitetos; sobretudo quando são de qualidade os arquitetos, como era o caso” (p. 13).
Não é difícil, portanto, perscrutar logo desde as primeiras páginas as semelhanças com o seu trabalho desenvolvido com a equipa de projetistas da sede da Fundação Gulbenkian, e mais tarde na campanha de renovação em 2000-3, o evidente contínuo de soluções de mobiliário que, nos foyers do Grande Auditório, logo de imediato evocam as poltronas, sofás, banquetas e pequenas mesas de apoio com tampo de vidro, que ali ganharam a variante de madeira de nogueira americana e pele preta (pp. 6-7, 38-47). Também no restaurante, cafetarias e bares, Daciano retomou móveis criados para os hotéis Madeira Palácio, no Funchal (970-71) e Alvor Praia (1966-68), e para o LNEC (1971-72), usando, por exemplo, palhinha tecida à inglesa, madeira de pau-rosa encerada, tubos e puxadores de latão polido e envernizado (simplesmente magnífico o aparador de serviço, foto p. 115). É o caso da linha Quadratura, produzida pela Metalúrgica da Longra.
Em áreas reservadas, gabinetes de trabalho foram equipados com móveis da linha Metropolis, produzida pela mesma fábrica desde 1988, e para a original sala de banquetes da presidência, conhecida por salão nobre, ou Sala Fernando Pessoa, foram adoptadas consolas desenhadas em 1971 para idêntico espaço à disposição da administração da TAP no aeroporto de Lisboa. Nos camarins colectivos, encontram-se cadeiras da linha Habitat 70 (1969-70) em faia e tecido de lã, produzidas pela Olaio, que são já uma declinação de modelos criados, pouco antes, pelo designer para idênticos espaços no edifício-sede da Gulbenkian. A cadeira da plateia do Grande Auditório reaproveita a base de assento de carvalho multiperfurado concebida para um outro contexto, mais modesto (sem veludo dourado), e a cadeira de plateia para os auditórios pequenos é, afinal, uma variante da criada para o Teatro Villaret no longínquo ano 1962.
Esta assinatura autoral, e a presença tão evidente de peças “icónicas” de um autor de referência, é todavia conjugada com novas produções especificamente desenhadas para funções concretas, como grandes mesas de reunião, uma circular de 28 lugares (pp. 78-79 e 80) e uma retangular vazada para 45 (pp. 70-71), a partir de unidades desmontáveis e recomponíveis, com tampos folheados com madeira de raiz de nogueira e rebordo reforçado a madeira maciça: “a dignidade da tradição artesanal e das artes decorativas, a nobreza dos materiais naturais e raros são assim convocadas para sublinhar a experiência dos sentidos”, escreve João Paulo Martins à p. 53. Produzido pela Olaio, o grande aparador criado para o Salão Nobre (200 x 45 x 75 cm), com pau-rosa, raiz de nogueira, nogueira americana, carvalho, aço, latão, vidro cristal — e outros materiais não aparentes — é uma obra magnífica (foto p. 65). Poltronas e mesas de apoio da série Boroa (mais tarde com variantes na Casa da Música e na Estação de Sul e Sueste) condizem com o estilo sólido, maciço e retilíneo da ampla construção, enquanto balcões de serviço folheados a carvalho, rodapé e remate do tampo superior em latão e o sofá de três lugares revestido a pele natural negra propiciam, seja o melhor ambiente de acolhimento ao público (foto p. 49), seja o devido conforto e aparato institucional (La Stupenda, precisamente!; foto p. 67).
As páginas finais são dedicadas a “Depois do Centro Cultural de Belém”, que o autor considera “um ponto de viragem, uma oportunidade para assentar os fundamentos de uma nova etapa no seu percurso criativo”, feito até então de “frentes simultâneas, com múltiplos cruzamentos, convergências e sobreposições”. E acrescenta: “No caso do CCB, Daciano da Costa combinou modelos de desenho exclusivo e inédito com outras peças de sua autoria, aqui adaptadas em termos de materiais, de cores e de acabamentos”, um “testemunho da sua história pessoal, mas também como um percurso de três décadas de design de mobiliário em Portugal” (p. 179). Uma certa revisão crítica seria aprofundada em trabalhos posteriores, inclusive na reformulação dos interiores e do mobiliário da Fundação Calouste Gulbenkian operada na viragem do milénio — algo que podemos ver, afinal, como se uma “pescadinha de rabo na boca” se tratasse, expressão talvez agradável ao seu muito peculiar sentido de humor…
Este livro é lançado a 9 de novembro, pelas 18h30, na livraria Almedina do Centro Cultural de Belém, com apresentação de Elísio Summavielle, João Pedro Costa e Bárbara Coutinho