Em O Rapaz e a Garça, que deveria ser o último filme de Hayao Miyazaki, mas afinal parece que já não é (pelo menos, de acordo com as declarações do vice-presidente do Studio Ghibli no Festival de Toronto, em setembro — e recorde-se que já por várias vezes o cineasta anunciou a sua reforma e regressou ao cinema), há uma torre abandonada e mágica que leva a um mundo paralelo fantástico, pelicanos belicosos, rãs trepadoras, periquitos matulões e carnívoros que manejam enormes utensílios de cozinha e vivem em monarquia, uma rapariga-marinheira e uma menina que domina o fogo, criaturas minúsculas, fofinhas e etéreas chamadas “warawara”, um pedregulho gigante parado no meio do céu e um misterioso ancião que tutela este estonteante mundo e a sua desvairada população (a banda sonora, excelente, é, como sempre de Joe Hisahishi).

Ou seja, encontramos aqui a imaginação desabrida, o sentido único do maravilhoso, a efervescência emocional e o deslumbramento visual característicos de Hayao Miyazaki. O que não encontramos no filme é a coerência interna, o sentido de história, a capacidade de exposição e a clareza narrativa também próprias do mestre japonês. Ainda mais cheio de notações autobiográficas do que a sua longa-metragem animada anterior (e supostamente, de despedida), e superior a esta, As Asas do Vento, e dedicado ao seu neto, O Rapaz e a Garça é um filme repleto de metáforas, símbolos, mensagens codificadas e personagens que se dobram sobre si próprias. E também desordenado, incoerente e aleatório, onde as componentes cifrada, poética e cinematográfica têm prioridade sobre a organização e a legibilidade do argumento. É como se Miyazaki o tivesse ido inventando à medida que o desenhava.

[Veja o “trailer” de “O Rapaz e a Garça”:]

Inspirado num livro juvenil publicado em 1937, How do You Live?, de Genzaburo Yoshino (e que se vê a certa altura no quarto do protagonista), O Rapaz e a Garça passa-se em 1943, em plena II Guerra Mundial e tem um protagonista masculino — o que é pouco habitual na obra de Miyazaki — , o jovem Mahito, que perde a mãe quando o hospital em que esta trabalha é bombardeado pelos americanos (a sequência é do mais tremendo que o realizador já filmou, e remete para O Túmulo dos Pirilampos, do seu falecido amigo, colega e co-fundador do Ghibli, Isaho Takahata) e vai mais tarde viver para o campo, num casarão da família. Entretanto, o pai voltou a casar-se, com a cunhada, Natsuko, que é parecidíssima com a irmã e está grávida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Lá chegado, Mahito não se adapta e começa a ser perseguido e incomodado por uma garça falante, que esconde dentro de si um estranho homenzinho com um nariz enorme e dentes horríveis, que podia ter saído de A Viagem de Chihiro ou de O Castelo Ambulante. Ele diz ao rapaz que a mãe não morreu no incêndio do hospital e está viva, e que se ele a quer ver, basta-lhe que o siga até à torre há muito abandonada, e onde certo dia desapareceu o tio-avô de Mahito, e que fica ao pé da casa. Depois de, sem sucesso, ter tentado matar a estranha criatura, e da tia grávida ter por sua vez também desaparecido, o rapaz segue-a, junto com uma das muitas velhas, curvadas e patuscas criadas que cuidam da casa, e entra na torre.

[Ouça excertos da música do filme:]

Aí chegado, “O Rapaz e a Garça” muda de feição, mergulhando num ambiente de onirismo cerrado e fantasia total e sem azimutes, e transformando-se no filme mais desconcertante, mais arbitrário, alegórico e “abstrato” de Hayao Miyazaki. Por entre o cerrado “world building”, a arrebatadora azáfama visual e o bestiário delirante, percebe-se que o octogenário realizador poderá estar a retratar-se, pelo menos em parte, quer no jovem Mahito, referindo-se à sua juventude, quer no tio-avô, refletindo sobre o valor e o significado da sua vida criativa e se o que fez perdurará ou não, e a possível continuidade às mãos de outros (a geração mais jovem de autores de animação?), agora que o fim está cada vez mais perto.

Pela história passam também temas como, a infância, a guerra e o luto da mãe, a morte e a natureza, a inexperiência e a sabedoria, o peso e as deceções da realidade e a fuga para as alegrias da fantasia, a aprendizagem e a transmissão de valores e práticas, embora O Rapaz e a Garça permaneça insistentemente opaco mesmo até ao seu final súbito e elíptico, após um regresso ao mundo “real” e um desenlace em que tudo fica bem arrumadinho. E que é também de uma grande paz, quando consideramos tudo aquilo por que Mahito passou, e nós com ele. As Asas do Vento teria ficado melhor como despedida de Hayao Miyazaki, mas se se revelar que O Rapaz e a Garça será mesmo o seu último filme, é uma saída de cena narrativamente intrigante, mas cinematograficamente esplendorosa.