No Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier (ITQB), da Universidade Nova de Lisboa, Ana Pina coordena o laboratório de Sistemas Peptídicos inspirados na natureza. Isto significa que a investigadora de 40 anos “trabalha no interface da química e da biologia com o foco no uso da química supramolecular de péptidos para compreender a complexidade dos sistemas biológicos”.
Ora, e o que significa isto, exatamente? Como se traduz, na prática, esta designação científica complicada? Há uma forma mais simples e divertida de explicar, que ajuda a compreender melhor porque é que a cientista gosta tanto do seu trabalho: “É como brincar com Lego: pegamos em peças de tamanhos diferentes – os péptidos – e experimentamos montá-las com organizações distintas para criar arranjos”.
Estes arranjos diferentes com péptidos – moléculas constituídas por dois ou mais aminoácidos ligados – dão origem a biomateriais com certas propriedades. Um dos projetos que Ana Pina tem atualmente em curso está a explorar novos materiais que mimetizam o colagénio – um dos constituintes da pele, que lhe confere elasticidade – de forma a criar biobaterias que possam ser usadas na nossa pele.
Há hoje uma série de dispositivos médicos utilizados em contacto com o nosso corpo. O sistema de Monitorização Contínua da Glicose (MCG), por exemplo, usado por pessoas com diabetes, que avalia os níveis de glicose de forma constante, através de um sensor inserido na pele. Ou os exames Holter, um tipo de eletrocardiograma que permite registar a atividade elétrica do coração e que, habitualmente, é feito durante 24 ou 48 horas, por exemplo, para detectar arritmias. Ou pulseiras, semelhantes a um relógio, que detetam crises de epilepsia.
Que haja este tipo de tecnologia portátil é uma enorme vantagem, mas ainda subsiste um problema que qualquer pessoa que já tenha feito um Holter reconhece bem: é desconfortável e pouco prático.
Há uma enorme e inovadora área de investigação, à escala global, que tenta tornar todos estes equipamentos médicos “vestíveis” (wearable): torná-los numa espécie de pele eletrónica, fina e flexível, que é possível colocar por cima da nossa própria pele como se fosse um penso. O grande desafio até à data tem sido a fonte de energia dos aparelhos: muitos destes equipamentos continuam a ser grandes e rígidos por causa das baterias de que precisam para funcionar e que são, habitualmente, à base de lítio, com as dos nossos telemóveis.
Tudo seria diferente se fosse possível criar uma bateria que fosse, também ela, uma espécie de segunda pele e é para isso que Ana Pina está a trabalhar. “Estamos a tentar criar biobaterias, feitas em materiais que imitam o colagénio, que possam alimentar este tipo de dispositivos médicos para que, também eles, possam ser flexíveis e dinâmicos, como a pele”, explica a investigadora. Esta possibilidade, além de resolver o desconforto de quem utiliza estes equipamentos, atenuaria outro problema: ajudar a minimizar a gigante pegada de carbono causada pelas atuais baterias de lítio.
O consórcio que está a desenvolver esta bateria biológica é liderado por Ana Pina, juntamente com Ana Baptista, do Centro de Investigação de Materiais (CENIMAT) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Juntam-se às duas cientistas Erin Tranfield, do Instituto Gulbenkian de Ciência, e Leonor Morgado, da Unidade de Ciências Biomoleculares Aplicadas (UCIBIO) e Felipe Conzuelo, do ITQB, ambos ligados também à Universidade Nova.
O grupo venceu, em abril deste ano, o Fundo de Prova de Conceito InnOValley (IOV PoC), co-financiado pelo OeirasValley, Fundação Calouste Gulbenkian e ITQB NOVA, e agora, uma bolsa CaixaImpulse Inovação, atribuída pela Fundação “la Caixa”. Até 2025 esperam poder criar um protótipo desta bateria que a ponha no caminho de poder ser comercializada nos anos seguintes.
Para Ana Pina, esta é uma grande alegria. Tal como todos os cientistas que fazem investigação fundamental, ela encontra a sua principal motivação para investigação na curiosidade e no desejo de perceber os mecanismos que desvendam o funcionamento das coisas. Mas há também outro combustível que a move: fazer coisas. Desenvolver tecnologia que possa chegar ao mercado e melhorar, de facto, a vida das pessoas.
Acredita que esse entusiasmo talvez lhe venha de uma das referências que teve durante a sua formação. Depois da licenciatura em Química Aplicada, na Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova de Lisboa, onde fez também o mestrado em Biotecnologia, seguiu-se um doutoramento na mesma área, em parceria com a Universidade de Cambridge, no Reino Unido. E foi aí que teve contacto com algo que via pouco por cá. “Era um sítio incrível porque montava-se uma empresa [para fazer chegar o produto ou tecnologia ao mercado] com tudo o que se desenvolvia no laboratório. Achei isso espetacular e fiquei com esta espécie de alma empreendedora.”
Tão empreendedora que chegou a achar que, quando terminasse o doutoramento, era precisamente ao empreendedorismo em biotecnologia que se ia dedicar e não a fazer ciência num laboratório. “Cheguei a querer ir ao Shark Tank”, referindo-se ao programa televisivo em que inventores apresentam as suas ideias a um painel de milionários que procuram novos investimentos.
Aliás, esta vontade de fazer coisas – concretas, que se possam ver e que sejam palpáveis e que cheguem às mãos de outras pessoas – levou-a desenvolver um hobbie invulgar no fim do doutoramento: fazer bolachas científicas. Explica, a rir, que na altura estava a começar a tendência do cake design, mas ela achou que fazer bolos dava muito trabalho. «Mas comecei a fazer bolachas com a forma de bactérias, de moléculas, de coisas relacionadas com a ciência.»
Acabou por pôr as bolachas de lado e o Shark Tank também porque descobriu a química supramolecular com péptidos numa conferência a que assistiu e percebeu imediatamente que era isso que queria fazer. Decidiu continuar na ciência, pelo que fez um pós-doutoramento, na área de (Nano)Química, no Advanced Science Research Center, em Nova Iorque.
«Sempre planei pouco a minha carreira. Fui fazendo escolhas conforme aquilo que realmente gostava e me apetecia. Podia ter corrido mal.» Mas não correu: hoje tem o seu próprio laboratório de investigação no ITQB, há cerca de dois anos, o que lhe dá a liberdade e o prazer de continuar a fazer o que adora.
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto da nova bateria projetada por Ana Pina, investigador do ITQB, foi selecionado para financiamento (49 mil euros) pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2023 do CaixaImpulse Validate, um programa que promove a transformação do conhecimento científico criado em centros de investigação, universidades e hospitais em empresas e produtos que geram valor para a sociedade. As candidaturas para a edição de 2024 deverão abrir em breve.