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"É esta espécie de culto que criamos": a gentileza infinita do Conjunto Corona

Este artigo tem mais de 1 ano

Passado um ano, o Conjunto Corona volta aos palcos com "ESTILVS MISTICVS", o álbum lançado a 13 de outubro. Estiveram no Musicbox, em Lisboa, e agora seguem para o Hard Club, no Porto, dia 1.

Sem espaço para mais coisa nenhuma: dB, Logos e o Homem do Robe, ou como o Conjunto Corona tomou conta do Musicbox
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Sem espaço para mais coisa nenhuma: dB, Logos e o Homem do Robe, ou como o Conjunto Corona tomou conta do Musicbox

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Sem espaço para mais coisa nenhuma: dB, Logos e o Homem do Robe, ou como o Conjunto Corona tomou conta do Musicbox

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Um palco sombrio. Dois caixões, ao alto, arremessados ao centro, dispostos paralelamente. Há teclas disfarçadas de tons escuros daquele lugar que não via um raio de luz, a não ser da porta de entrada que distanciava quem chegava para ver as sessões de concertos. Um pelas 21h e outro pelas 23h. Ao longe ouve-se Gondomar. Repete-se em uníssono “Gondomar, Gondomar, Gondomar”. Passa-se a primeira porta, a segunda, e estas palavras ficam ainda mais claras. Os decibéis alteram-se. Sobem. E é aqui que não há margem para dúvidas: o Conjunto Corona subiu ao palco.

Volvido um ano desde a última vez que se encontraram com o público, no Festival Paredes de Coura, em 2022, Db e Logos (Edgar Correia) regressaram a uma das casas em que tocaram pela primeira vez, em 2014. Quase uma década passada, não contiveram o que ali vinham trazer: uma nova estética, novas sonoridades e uma nova face de Corona que começa quando esta personagem decide ir à bruxa. Depois de cruzar superstições, com o lançamento a assinalado a 13 de outubro, o Musicbox entregou-se a ESTILVS MISTICVS.

Faltavam cerca de três horas para a primeira sessão quando as portas da frente do Musicbox se abriram. Os artistas coordenam-se para jantar depois de um soundcheck e de uma preparação pouco menos intensa do que viria a ser em palco. Não faltou muito para que a fila à porta do bar se começasse a formar. A expetativa era alta e entre o burburinho que se fazia ouvir na plateia, cantarolar um e outro refrão do G de Gandim era quase uma despedida para o que se seguia.

O silêncio instala-se. Durante os 50 minutos que se seguiram não houve quem se mexesse um único centímetro para reduzir as suas atenções – a menos que fosse para levantar braços e acompanhar os beats, ou para serem “demasiado gentis”, como David Bruno não deixa de repetir uma e outra vez. Se havia espaço, a música preencheu-o. Alguns rituais iam sendo projetados na parede atrás do palco. Círculos, rezas, inspiradas em um dos exorcismos que o padre Sousa Lara, de Lamego, gravou num testemunho que, como conta David Bruno, é um dos únicos documentados em vídeo no Youtube em Portugal.

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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Não há dúvidas: uma atmosfera obscurantista ali se montou. Talvez porque houvesse mais ou menos crentes, ou talvez pela expetativa de ver o duo “icónico” que preenche uma mão cheia dos artistas mais interessantes da música portuguesa nos últimos tempos. E esta não é uma nova aventura musical de Conjunto Corona. Não é uma submissão a uma estética musical nem é um resgate. Conjunto Corona não é “uma porta estandarte de nenhuma mensagem nem de nenhum estilo em específico, não somos reféns de uma estética”, ainda que contem histórias e todas elas tanto ficcionais como reais. ESTILVS MISTICVS é a compilação de uma bela rodada de anos de Conjunto Corona. Não é um disco feito hoje ou para hoje, mas tal como o duo nos tem habituado, antecipam aquilo que se adequa que “nem uma luva” aos dias de hoje. É celebração e homenagem a figuras e localidades ímpares na cultura suburbana.

Depois de G de Gandim este desenho que completa a estética de Conjunto Corona surge com naturalidade. Todos os discos têm um conceito — “é um episódio da vida da personagem”, como explica Logos — e se o techno e o reggaeton se aproximava mais aos anos 2000, que era o que pretendiam com o álbum anterior, que era uma das camadas que se vivia na zona industrial do Porto, no leito das discotecas.

Já na construção do álbum que lançaram há pouco mais de um mês, houve ainda uma exploração de uma outra estética que optaram por não usar. “Surgiram esses instrumentais que fizeram sentido para o conceito que já tínhamos e optámos por avançar com eles”, explica Logos. O conceito já estava bem definido, ainda antes de existir um nome. Era disto que se tratava: morte, bruxaria e jarda. ESTILVS MISTICVS é um álbum sobretudo centrado nestas três premissas e a primeira sessão de concertos deixou-o bem claro.

Já na segunda rodada de instrumentais, David Bruno só os apurou aproximando-a de uma “estética mais lo-Fi” que já contemplam outros dos seus discos. Ao olharem para o horrorcore — Three 6 Mafia é talvez a maior referência para a sonoridade deste concerto (e álbum), ainda que este parece ser apenas um ponto de partida —, o Conjunto Corona ampliam o seu universo sonoro, mas fazem-no de forma a que, simultaneamente, soe refrescante e familiar.

O universo pagão, de muitas bruxarias, superstições e mezinhas, foi a principal fonte de inspiração para um disco obscuro que terá sido o mais “espontâneo”. Enraizados em muito do hip hop construído a Norte do país como surgiram esporadicamente no repertório da banda, se antes, era apenas pano de fundo para as vivências de Corona, em ESTILVS MISTICVS é o adorno principal para esta fase da sua vida — do grupo e da personagem.

Dez anos depois, um público de culto

Ora Ring Ding Dong abriu o concerto. A música que integra o novo disco seguiu-se de Chico Com a 6-35, Pra Cabeça Ou Pro Peito, Puta da Velha, Ei Oh Marujo, Tabuleta, Corona Bye Bye, Fumo na Panela. Foram mais, mas pelo menos a estas sete canções ninguém escapou. Conjunto Corona prometeram que se seguiram clássicos. E colmataram o quarto de tempo do concerto que faltava com  Chino no Olho a 187 no Bloco passando, claro, por Santa Rita Lifestyle e o hino de candidatura de David Bruno, Perdido na Variante. Se David Bruno anunciou a sua candidatura depois do “presidente da Câmara de Gaia se despedir, porque a mulher andava a usar o carro da companhia das águas”, tal como o mesmo afirmou, Pacotes finalizou a sua presença política no reforço de que João Galamba não os tinha [os pacotes].

Em palco intercalavam-se. A presença assídua do Homem do Robe — como sempre e, a cada passo, ouvia-se o Tropa Snow, ainda que lá não estivesse. Este é um dado importante, porque o podcast do Homem do Robe e do Tropa Snow — agora disponível online — levou a que este álbum também fosse concebido. Gravaram um episódio com uma série de perguntas que liam pela primeira vez e, “por alguma razão do além, as respostas eram sempre sobre o oculto, baseadas no misticismo”, avança David Bruno. Daí passarem por ter uma participação especial em palco.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Se a primeira sessão foi para os fiéis do duo do Porto, a segunda foi para partilhar as primeiras experiências. Contou com crowdsurf, não escapou ao típico servir de hidromel e à subida dos próximos ao palco. Já a primeira sessão não mostrou calmaria do início ao fim. E os artistas não deixaram que isso escapasse. “Mas ambos os concertos foram intensos”, reconhece Logos. Tanto que David Bruno não deixou de notar que, no dia seguinte, “o Edgar parecia o Padrinho”. Foi no rescaldo das duas sessões que voltamos a reencontrá-los.

“É bom ver que ao fim de quase dez anos o feeling mantém-se o mesmo e, também por isso, fizemos questão de ir ao Musicbox, a um lugar mais pequeno onde podemos ver as caras de toda a gente”, continua David Bruno. E assim foi.

Apesar de reconhecerem que o público que “servem” não é muito grande (“não somos propriamente os Rolling Stones, nem os Xutos e Pontapés”), é um público de culto. Se na Prova Oral, da Antena 3, Fernando Alvim e banda foram apanhados  de surpresa com a intervenção de uma fã de 60 anos, foi no pequeno espaço do Musicbox, três dias depois, que vários casais dentro da mesma casa de idades, aplaudiram e cantaram bem alto os clássicos de Conjunto Corona. “É quase como aqueles filmes tipo Sharknado ou de culto pequenos que até nem têm aquela crítica avassaladora no IMDB, mas têm um grupo de fãs que fazem festas com esse tema e seguem”, remata David Bruno.

“É esta espécie de culto que criamos.” Enquanto recordam aquelas que foram as quatro sessões essenciais da apresentação do novo disco, do outro lado da tela, David Bruno, ainda que ao acaso, garante que o lado sombrio e de oculto que permanece neste objeto artístico se mantenha, deixando a sua tela a negro. No caso de Logos o acaso permitiu que se mantivesse presente, “de corpo e alma”.

Ambos concordam que este é um álbum à frente do seu tempo. Assim como os dois anteriores. “Em relação G de Gandim é engraçado, porque na altura fez sentido, estávamos todos fechados em casa na pandemia e como ninguém saía, começámos a ter estas memórias dos anos 2000 e das saídas desses anos”, explica David Bruno.

A pontapé nas costas (álbum Lo-Fi Hipster Trip, 2015) escancarou a porta à relação que Corona — personagem ou banda — se relacionava com a vida real. “Não deixa de ser uma música sobre gentrificação das grandes cidades em Portugal, em específico o Porto, ou seja, em 2013/2014 já se sentia no ar que o Porto estava a mudar e sentíamos que alguma coisa estava prestes a acontecer na cidade, que estava em ebulição”, explica Logos.

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É também a partir desse lugar que o álbum que ouvimos e o concerto que assistimos, parte de dentro para fora: “é nos momentos de crise da sociedade humana, no geral, que se procura o oculto; quando não temos explicações para as crises, para os problemas que estão a acontecer e realmente estamos a viver uma fase bastante complicada a nível global, com a derrocada de algumas ideias ou algumas coisas que considerávamos estanques”, acrescenta ainda Logos.

Ao longo da conversa com o Observador os artistas não deixam de reconhecer que esta realidade, a do oculto, é uma realidade segura. “Esta será uma fase em que as pessoas estão se a virar outra vez para fora, para as perguntas grandes, as que normalmente não temos respostas, porque continuamos a ver a destruição e continuamos a ver constantemente avanços e recuos de ideias relacionadas com direitos humanitários que já vêm a ser uma consequência em 2023”, também por isso concordam que faz sentido este álbum ter saído agora.

Os instrumentais demoraram três semanas. Terminar o disco na sua totalidade três meses. Não há uma escrita clara de “rapper”, mas há rimas, há beats. “Há mais uma cantiga, em que se resume as palavras do que realmente importa”. Para Logos e David Bruno este universo permite, a quem os ouve, alinhar-se numa espécie de transe dentro da repetição. Não há rimas soltas. Só situações. “O que fica é o que realmente interessa dentro do resumo”. O Conjunto Corona também é isso: o resultado aprimorado — ao fim de dez anos — de um resumo que não se perde em si nem em conteúdo.

Segue-se uma tour nacional em 2024, mas, antes disso, uma ida ao Hard Club, no Porto, esta sexta-feira, dia 1 de dezembro. Não há bilhetes disponíveis, mas há chá místico.

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