Quem começou a viver a noite do Porto no início dos anos 2000 certamente lembrar-se-á da azáfama de táxis a fazer segunda fila na Zona Industrial. Ali era o coração da noite da cidade, ainda a baixa era lugar perigoso para se andar à noite, diziam os pais – esses que, coitados, de robe vestido paravam à porta do Tomate às quatro da manhã para irem buscar os filhos menores entusiasmados com os primeiros Safari Cola, Pisang Ambon e Bacardi Breeze. Nessa época, o B-52 era o shot que mais rolava ao balcão, a par do Gold Strike a mandar sainete com as folhinhas douradas a boiar no copo. Na pista havia um misto de house, techno e reggaeton – quem nunca dançou Daddy Yankee, “Dame más gasolina”, que atire a primeira pedra.

“A música latina sempre teve uma grande tradição no Porto”, lembra Logos, alter ego de Edgar Correia, o parceiro de David Bruno (dB) no Conjunto Corona. Nas gerações anteriores à dele, nascido em 1985, eram as cassetes de Julio Iglesias e a salsa que faziam furor. Portanto, quando o reggaeton aterrou nas discotecas portuenses no virar do milénio, “teve um impacto tremendo”:

“Normalmente a pista de abertura era quase sempre música latina, em especial o reggaeton que estava a aparecer em força nessa altura, mas ainda como um estilo muito marginal.”

Um dos haréns do reggaeton era o La Movida Beach, a mítica discoteca com cabeças de tubarão espalhadas pelas paredes, uma palmeira com néon florescente no logo, empregados de tronco nu a servir no bar, qual resort caribenho plantado a dois passos do bairro do Viso e da Rotunda dos Produtos Estrela. Mas todo o clube da altura, desde o mais tímido com Sean Paul, “Shake dat ting yow”¸ ao mais descarado que arriscava tudo ao passar Don Omar, incluía nas suas playlists referências latino-americanas.

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[“Mãe birei Gandim”:]

Olhar para esta realidade com os olhos de 2021 é muito mais do que trazer o saudosismo à tona, até porque o reggaeton se imiscuiu solidamente na esfera pop, graças a nomes como J Balvin ou Bad Bunny. “A estética não mudou quase nada desde que apareceu em 2003 e tornou-se numa coisa aceite. É produzido com mais alguma qualidade, tem mais auto-tune, mas o estilo e os instrumentais são os mesmos”, diz David Bruno que, pela primeira vez num álbum dos Corona, deixou os samples de lado e construiu os instrumentais de raiz.

“Mãe, birei gandim”

Não que isso tenha sido pensado propositadamente para os Corona, que até ali se andavam a mexer mais pelo boom bap, com vídeos de internet pelo meio, coisas icónicas que dB sempre gostou de ir colecionando com a sede de um antropólogo da era digital. Mas a ocasião fez o ladrão, neste caso o gandim.

Estávamos em 2019, ainda a pandemia era matéria de ficção científica, e Logos foi jantar a casa de dB. “Como é habitual, sempre que temos alguma coisa que andamos a fazer paralelamente ou sem motivo nenhum, gostamos de mostrar um ao outro. Foi o que aconteceu com estes instrumentais”, conta Edgar que nunca foi dado a comodismos: “No Santa Rita Lifestyle (2018), talvez o nosso álbum mais aprimorado, senti que foi demasiado fácil, ou seja, estava muito seguro de que aquilo que estava a fazer ia correr bem. Isso não me deixou muito agradado. Felizmente, eu e o David temos essa forma de estar, de não nos acomodarmos muito”.

Hip hop, rotundas e religião: o Conjunto Corona pode tudo

Como tal, mal dB entrou com os seus instrumentais de reggaeton, embrulhados em techno – outro estilo muito forte nas pistas de dança dos anos 00 — a primeira coisa que passou pela cabeça de Logos foi: “é isto mesmo!”. “O Edgar é assim, para o convenceres é fazeres psicologia inversa”, brinca dB.

O processo foi em tudo semelhante ao do primeiro disco dos Corona. Na altura, também nada fora planeado: dB mostrou uns “instrumentais esquisitos com samples de rock psicadélico” a Logos que, ouvindo aquilo, quis de imediato compor umas letras para aqueles instrumentais. Este regresso às origens acaba por casar com a própria narrativa do álbum. Se os anteriores nos apresentaram Corona, o tipo que esteve agarrado às drogas e ao mundo do tráfego para depois se reabilitar, abrir um bar de alterne em Cimo de Vila e finalmente se render a Deus e à religião, em G de Gandim o grupo mostra as origens desta personagem e o momento em que ele assume: “mãe, birei gandim”.

“Nunca tínhamos falado sobre esta época que nos diz muito aos dois”, atira desta feita Edgar. “Pode dizer-se que é a primeira vez em que se está a explicar quem é o Corona. Aqui a narrativa fica mais contextualizada”.

E quem é Corona? Nada mais do que um miúdo que no ciclo já era expulso das aulas de EVT, juntamente com o Fábio do 5ºA e o China no 5ºB, que gostava de ver a La Salette no espaldar e até lhe chegou a enviar um bilhete, “queres andar-me em cima ou não?”, aprendeu a travar fumo atrás do pavilhão e que apanhava táxis para o Viso para entrar nas discotecas, nome na guest e tudo, porque se o sinhore doutor pode “mamar o Gold Strike”, ele também pode “andar na night”.

“Simplesmente estamos a descrever a nossa gente e a nossa região”

G de Gandim é, à semelhança dos outros trabalhos de Corona, um retrato social preciso de uma época, de uma cidade e das suas gentes. Tanto o podemos perceber com humor, como obra non sense ou como matéria de reflexão séria, porque naquelas 13 faixas – pontuadas por interlúdios preciosos de diálogos à porta da discoteca ou na casa de banho a comentar a grande gata que é a Sandra, com “Nightcall” a passar abafado de fundo – cabe tudo.

Mais interessante ainda é perceber, tal como nota dB, que se o gandim em 2000, vestido a De Puta Madre 69 dos pés à cabeça, era altamente marginalizado (tal como o reggaeton), “hoje toda a gente quer ser isso”: “A moda na altura dos gandins era uma coisa de completa aberração e hoje em dia esse tipo de peças são haute couture. As próprias marcas fazem roupas que alimentam este estilo como sendo uma coisa fashion. A sociedade à volta de repente começou a aceitar esse estilo marginal como sendo uma coisa altamente fixe e, se fores a ver, ser gandim hoje em dia é espetacular”.

[“Sempre a Riffar”:]

Enquanto a moda redesenha significados, os Corona tratam de os pôr no lugar certo para que as referências não se percam. Isso não impede, de todo, que ficção e realidade flirtem uma com a outra, misturando referências de épocas temporais distintas que, no final das contas, desembocam naquilo que é a sua vivência autêntica da cidade.

Pouco importa que na mesma letra falem de ir comer um éclair ao extinto Big Ben, café-restaurante onde parava uma boa dose da clientela dos clubes de strip das redondezas, e de estar na guest list do Pérola Negra, hoje tornado clube de referência da cidade, mas, que por altura do Big Ben, era uma das mais badaladas casas de alterne portuenses, frequentada inclusivamente pelas elites do futebol. Ou que juntem a meia posta do Sai Cão ou as comezainas no Bragança, restaurantes tradicionais onde as doses são inversamente proporcionais ao preço, às “memórias do JN”, o edifício icónico da Rua Gonçalo Cristóvão que, estando ainda de pé, está fadado a tornar-se num hotel de luxo.

Esse vínculo regional forte é, curiosamente, aquilo que alimenta o fenómeno Corona além Porto. “Pensar em não fazer uma coisa muito regional com medo de te expandires é a pior receita para te expandires”, defende dB, para quem os músicos devem entregar às pessoas algo que lhes seja verdadeiramente genuíno.

“Isso não é nada limitador. Desde que a música e o conteúdo sejam bons, acho que até te ajuda a expandir, como foi o nosso caso. Se não falássemos daquilo que temos propriedade, que é a nossa cidade, seria mais difícil ser tão genuíno. Simplesmente estamos a descrever a nossa gente e a nossa região”.

Os primeiros concertos de apresentação de G de Gandim são precisamente fora do Porto, em Lisboa, cidade que olha para “todas estas músicas e sítios como sendo muito exóticos”. Dia 3 e 4 de dezembro, David Bruno e Logos juntam-se ao inevitável Homem do Robe para um concerto duplo no MusicBox (€10). Uma semana depois, a 10 e 11 de dezembro, é a vez do Pérola Negra receber o Conjunto Corona (€10). A mãe de dB bem lhe disse para ele ganhar juízo, “eu dava bastantes dores de cabeça aos meus pais”, mas agora a verdinha não pode parar.