De 1,9% para 3,7%. A fixação definitiva da subida das tarifas de eletricidade para 2024 acabou por ditar quase o dobro do aumento (face aos valores pagos em dezembro) proposto em outubro pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE). Mas, afinal, o que mudou em dois meses? E pode esta subida definida para a tarifa regulada contaminar a generalidade dos consumidores domésticos que estão no mercado livre?

A ERSE explica assim esta alteração. “A partir de outubro de 2023, em particular após a apresentação da proposta tarifária, observou-se, contudo uma diminuição dos preços da energia elétrica nos mercados grossistas, que se acentuou em novembro. Em resultado, verificou-se um agravamento do desvio de sobreganhos para o sistema elétrico nacional em 2023 que já tinha sido identificado na proposta de tarifas apresentada em outubro, em mais de 201 milhões de euros, situação que se justifica a alteração da variação tarifária entre a proposta e a decisão agora tomada”.

Eletricidade sobe 3,7% no mercado regulado em 2024, acima do previsto

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Em causa está o custo da energia elétrica adquirida a produtores que têm direito a um ganho garantido (que no passado foi classificado de rendas). Trata-se da rubrica que mais pesa na fatura dos custos políticos — custos de interesse económico geral (CIEG) — que são transferidos para as tarifas de eletricidade e que varia em função da evolução do preço da eletricidade em mercado grossista. Quando os preços são mais altos do que o ganho garantido a estes produtores, gera-se um sobreganho que opera a favor do sistema. Foi o que sucedeu durante a crise energética, período no qual estes contratos funcionaram como um seguro para preços de mercado muito elevados.

Quando a situação de preços se inverte, como tem acontecido desde o início deste ano, o sobreganho passa de verde a vermelho, no sentido em que o sistema elétrico é chamado a compensar estes produtores, gerando-se um sobrecusto. O que aconteceu entre a proposta de outubro e a fixação final das tarifas foi uma descida dos preços no mercado grossista, que na Península Ibérica é o Mibel, superior à contabilizada na proposta tarifária apresentada em outubro.

Evolução dos preços grossistas desde a proposta de tarifas da ERSE para 2024

O que esteve a arrastar os preços para baixo foi a produção renovável, que bateu recordes em Portugal sobretudo entre outubro e novembro, quando o país foi atingido por várias depressões — “rios atmosféricos — que provocaram chuvas fortes e persistentes, o que por sua vez, potenciou a produção hidroelétrica e também eólica. Mais produção renovável, combinada com um arranque de inverno temperado, teve como resultado a descida dos preços para valores residuais, sobretudo nas horas de maior produção e menor procura, o que trouxe para baixo o preço médio, baralhando as contas iniciais feitas pela ERSE.

Dada a existência destes contratos (que cobrem uma parte da produção eólica e central a gás da Tapada do Outeiro) preços mais baixos no mercado acabam por resultar em tarifas mais altas. E não apenas para os quase um milhão de consumidores do mercado regulado. Isto porque a compensação paga a estes produtores é financiada pela tarifa de uso global do sistema, que é suportada por todos os consumidores, incluindo os que estão no mercado livre. Essa tarifa para 2024 também foi fixada pelo regulador na última sexta-feira. Em vez de passar de valores negativos para 48,1 euros por MW hora na baixa tensão, como tinha sido proposto em outubro, vai subir em janeiro para os 69,2 euros por MW hora.

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É certo que a descida dos preços vai permitir também aliviar a componente da fatura que é relativa ao custo da energia, tal como já foi sinalizado por alguns comercializadores do mercado livre, como a EDP Comercial. Questionada sobre qual o impacto desta revisão em alta das tarifas de acesso para a atualização dos preços que tenciona fazer em 2024, fonte oficial da empresa indicou ainda estar a avaliar o documento tarifário produzido pelo regulador.

Já no caso da tarifa regulada, esse agravamento vai fazer subir mais os preços também porque a ERSE considerou que não deveria voltar a agravar a dívida tarifária depois da decisão já incorporada na proposta de preços para 2024 de atirar para o futuro (a cinco anos) o pagamento de uma parte dos custos associados a estes contratos.

“Desde a proposta apresentada a 16 de outubro, observou-se um grande aumento do montante de CIEG (custos de interesse económico geral) a recuperar na tarifa de uso global do sistema do ano (cerca de 534 milhões de euros), fruto da atualização das estimativas e previsões dos parâmetros que influenciam esses custos fundamentalmente relacionados com previsões de preços de energia para 2023 e 2024 que, caso fosse mantida a proposta tarifária de 16 de outubro, geraria um incremento da dívida tarifária superior ao da proposta submetida ao parecer do Conselho Tarifário”.

Neste contexto, a ERSE diz que acolheu o comentário deste órgão consultivo (no qual têm assento empresas do setor e representantes de consumidores e autarquias) de “aprofundar um cenário de acréscimo tarifário em baixa tensão (domésticos) mais alinhado com a inflação esperada” e assim, “mitigar o volume de custos a pagar pelas gerações futuras” para quem sobram os encargos desta dívida.

Apesar de um aumento transitório da dívida tarifária  — de mais de mil milhões de euros em 2024 — as simulações feitas pelo regulador apontam para que esta dívida possa ser eliminada até ao final de 2028 “sem comprometer a estabilidade tarifária, em particular na baixa tensão” onde estão os consumidores domésticos. Um cenário que parte do pressuposto de que não haverá nova potência atribuída com direito e remuneração garantida.

A contribuir para esta limpeza da dívida está também a redução da potência que tem direito a ganhos garantidos à medida que estes contratos terminam. O mais relevante diz respeito à Tapada do Outeiro, central a gás natural cujo contrato de aquisição de energia termina em abril do próximo ano. Para 2024, a ERSE ainda estima um “crescimento significativo deste componente dos proveitos permitidos para 247 milhões de euros, devido à redução do preço da eletricidade no mercado grossista que induziu um desvio de 250 milhões de euros a recuperar”.

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De fora desta proposta tarifária ficou o processo de repartição de custos com a tarifa social de eletricidade, que vai onerar mais agentes do sistema elétrico, incluindo os comercializadores, que podem passar este novo custo para o cliente final. A ERSE indica que irá submeter à consulta dos interessados as repartições do custos de 2023 e 2024, bem como a regularização dos montantes devidos do passado. Em causa está um custo adicional de 125 milhões de euros que até agora era suportado apenas pelos produtores de eletricidade, sobretudo a EDP.