Os consumidores de eletricidade vão ter de suportar um novo custo a partir de 2024 com o financiamento da tarifa social. O impacto na fatura final está a ser calculado pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) que está a avaliar como será distribuído pelos vários agentes do setor, entre produtores e comercializadores. E, neste último grupo, como será dividida a conta por cliente — se o valor a suportar será fixado em função da quantidade de energia consumida ou pelo número de consumidores, explica ao Observador Vítor Machado especialista em energia da Deco Proteste.

Dessa conta resultará um acréscimo a suportar pelos clientes de eletricidade que Vítor Machado admite que possa chegar aos 2%, considerando que está em causa uma fatura de 130 milhões de euros anuais com o desconto de 33,8% atualmente aplicado às cerca de 800 mil famílias que beneficiam da tarifa social.

A ERSE confirma que a “repercussão deste custo será uma decisão dos vários agentes de mercado.” Ou seja, caberá aos comercializadores decidir se transferem este encargo para os preços finais no mercado livre. Vítor Machado — que é o representante da associação de consumidores no Conselho Tarifário, órgão consultivo da ERSE —  admite que esse custo “não será de menosprezar.”

Já esta segunda-feira a associação que representa as empresas do mercado livre, a ACEMEL, indica também que o custo “necessariamente que será pago por todos os consumidores”, mas avisa que é “essencial que, na sua concretização, haja um contributo de todos os interlocutores da área”.

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Comercializadores preocupados com impacto no preço que não deve chegar já em janeiro

Em declarações ao Observador, o presidente da ACEMEL, João Nuno Serra, indica que as elétricas estão preocupadas porque não sabem qual o impacto que o custo virá a ter. Tendo apenas como base o consumo de eletricidade (sem a parte da produção) pode estar em causa um agravamento de 2,5% na tarifa de energia, mas pode ser menos, admite, porque os produtos com potência a partir dos 10 MW continuam a suportar a tarifa social. Por outro lado, João Nuno Serra não acredita que a medida “entre em vigor logo em janeiro”, porque a consulta dos interessados a lançar pelo regulador ainda não arrancou. Mas o novo custo irá chegar aos preços em 2024.

Se a conta for dividida pela quantidade de energia consumida, as empresas sairão penalizadas, um cenário que para o responsável da Deco não é o mais provável até porque poderia suscitar contestação. No total existem cerca de 6,5 milhões de consumidores de eletricidade em Portugal, dos quais cerca de 5,5 milhões estão no mercado livre.

Para 2024, as empresas comercializadoras de eletricidade já vão ter de encaixar na sua oferta comercial e na atualização dos contratos um aumento muito significativo das tarifas de acesso que pode ser compensado pela descida do preço da componente de energia na fatura final.

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A EDP Comercial já sinalizou que vai baixar em 15% esta parte da fatura, mas não se compromete para já com uma variação do custo total, remetendo para as tarifas finais (de acesso ao sistema) que serão fixadas a 15 de dezembro. Nesta data ficará também fixada a atualização da tarifa regulada para os quase um milhão de consumidores do serviço universal para os quais o regulador propôs uma variação de 1,9%. Questionada pelo Observador sobre se essa variação incorpora já o efeito do custo adicional com a tarifa social, a ERSE remeteu resposta para o dia 15 de dezembro.

A ACEMEL (Associação dos Comercializadores de Energia no Mercado Liberalizado) “aguarda que a ERSE lance a consulta aos interessados, onde certamente se analisarão os detalhes deste financiamento da Tarifa Social e que servirá para todos (Produtores, Comercializadores e Agentes de mercado) se poderem pronunciar e, apresentarem os seus pontos de vista, existindo desde já a preocupação do impacto na
estrutura de custos da fatura energética dos consumidores.”

Lei mudou por causa de queixa da EDP em Bruxelas

Em resposta ao Observador, o regulador explica que o “Decreto-Lei n.º 104/2023, de 17 de novembro, aponta para uma alocação diferente e mais abrangente do financiamento da tarifa social, que será agora suportado por produtores e comercializadores. Cabe à ERSE, nos termos da legislação aprovada, garantir a operacionalização do financiamento da tarifa social, ou seja, com base em informação previsional, alocar os custos da tarifa social pelos agentes de mercado do lado da oferta: produtores e comercializadores. Para este efeito, a ERSE irá submeter uma proposta ao Conselho Tarifário com esta alocação de custos da tarifa social.” Esta alocação dos custos  pelos diversos agentes de mercado será tratada em processo autónomo à proposta tarifária para 2024. A repercussão deste custo será uma decisão dos vários agentes de mercado”.

Este novo encargo resulta da mudança de legislação sobre o financiamento da tarifa social aprovada em setembro e que transferiu uma parte dos custos para os comercializadores, quando antes era apenas suportado pelos produtores de eletricidade. Esta mudança resultou de uma queixa que a EDP fez na Comissão Europeia contra este modelo em vigor desde 2011, mas cujos custos dispararam a partir de 2016 quando foi aprovada a atribuição automática da tarifa social aos beneficiários de prestações sociais para baixos rendimentos.

Comissão Europeia concorda que financiamento da tarifa social da energia é discriminatório

A Comissão Europeia deu razão à elétrica em 2022, considerando que o modelo aplicado em Portugal era discriminatório por concentrar os custos apenas nos produtores de eletricidade. Até agora, tem sido sobretudo a EDP a financiar a tarifa social, o que terá custado à empresa 460 milhões de euros em cerca de dez anos.

A EDP argumentava que os descontos aplicados aos consumidores de baixos rendimentos deveriam ser financiados pelo Orçamento do Estado por se tratar um política social ou “socializados” (partilhados) por todos os agentes do mercado, o que acabou por acontecer com a legislação aprovada pelo Governo. O novo modelo replica o que já existe para financiar a tarifa regulada do gás natural e, ao contrário do que acontecia com a anterior legislação, os operadores que têm de assumir o custo não ficam impedido de o transferir para os clientes finais. Também não existe qualquer obrigação legal de discriminar na fatura este novo custo de forma a que os os consumidores saibam se estão a pagá-lo.

Deco avisa que pagar tarifa social para 800 mil famílias não é sustentável

Vítor Machado diz que o modelo de tarifa social aplicado em Portugal levanta várias questões que ganham relevância com o novo modelo de financiamento.

A começar pelo critério já que sendo esta tarifa uma política social deveria ser assegurada pelo Orçamento do Estado. Depois questiona a enorme abrangência da tarifa social em Portugal — os beneficiários representam cerca de 15% de todos consumidores — o que considera excessivo face ao praticado em outros países. É um custo muito elevado a passar para os preços e não se limita a um apoio extraordinário e temporário para fazer face a uma situação de emergência como a que se viveu nos últimos dois anos, alerta. Para o responsável da Deco, este modelo “não é economicamente sustentável” e compara com o que se verifica na Espanha onde apenas 3% a 4% dos consumidores de eletricidade têm acesso a este desconto.

O especialista da Deco levanta ainda dúvidas sobre a eficácia da medida no combate à pobreza energética, considerando que a aplicação de um desconto de 33,8% é apenas um convite a consumir mais eletricidade e não um incentivo a mudar para práticas de maior eficiência energética.

Também o presidente da ACEMEL questiona a atual abrangência da tarifa social que é automaticamente atribuída a quem tem o subsidio de desemprego (para além de outras prestações sociais). Quanto mais beneficiários houver, mais pressão há sobre os custos. Por outro lado, a medida pode resolver um problema de vulnerabilidade económica, mas não resolve o problema da falta de eficiência energética. É o mesmo que  “jorrar euros para a rua em energia” porque as casas estão mal isoladas. A tarifa social fazer sentido no curto prazo, mas é preciso intervir na estrutura da habitação.

(Notícia atualizada segunda-feira, 9h40, com comunicado da ACEMEL e declarações do presidente)