A primeira coisa que tenho para lhe dizer é que 1993 foi há 30 anos. Ai, foi, foi; faça lá a conta. Não, também não foi há 31 – meia dúzia de dias ainda não dão a 2024 direito a contar como ano. Para a geração Z, 1993 há-de soar a um tempo antiquíssimo, em que se mandava whatsapps por papiro e, para ser influencer, era preciso pagar muita revelação de rolo e esperar sentado, mas, para quem quer que ainda se lembre de pagar um Pisang Ambon em escudos, 93 foi há bocado – como assim passaram 30 anos?
Isto, está-se mesmo a ver, a propósito de A Sociedade da Neve. Porque a primeira reação que nos assalta quando sabemos que fizeram um filme sobre a tragédia dos Andes é dizer: “Então, e o ‘Alive’?”
O Alive, gen-zi-zinhos, foi um filmaço dessa primeira metade dos anos 90, um dos poucos realizados pelo mais celebrado como produtor Frank Marshall, e um daqueles que ajudou a consagrar Ethan Hawke como ícone para os filhos do fim de século. Estamos Vivos, na sua acertada tradução portuguesa, levava ao grande público, pela primeira vez, a história tremenda, inesquecível, do acidente do Fairchild 571 da Força Aérea Uruguaia que se despenhou nos Andes a 13 de Outubro de 1972, quando levava os jovens jogadores do Old Christians para um torneio de rugby em Santiago do Chile.
[o trailer de “A Sociedade da Neve”:]
Na verdade, o caso tinha já sido levado ao cinema e apenas quatro anos depois dos acontecimentos. Mas A Epopeia dos Andes, do mexicano René Cardona, mais dado ao gore e ao exploitation, não podia, nem em termos de estética, nem de orçamento, aspirar a alcançar audiências globais. Essa missão caberia ao filme de Marshall, que, com a ajuda da banda sonora de James Newton Howard e a fotografia de Peter James, nos meteria naquele inferno branco dos Andes para nunca mais no-lo tirar da cabeça.
Lá em cima, dissemos “tragédia”? Também ficou conhecido como “o milagre dos Andes”. Ou: como a resistência humana pode sobreviver 72 dias acima de 3500 metros de altitude e abaixo de 30 graus negativos, sem comida nem água, desde que a esperança nunca se apague. A versão mexicana dizia no cartaz: “O mais chocante episódio da história da sobrevivência humana”; na americana, lia-se: “O triunfo do espírito humano.” Como negá-las? Toda a gente tinha de assistir àquela história – e perceber que não é moralmente aceitável desistir 99% das vezes que pensamos em fazê-lo.
Portanto, para quê voltar a contar uma história que já foi bem contada? Se não temos nada particularmente novo a dizer? Se nunca nos vamos esquecer da alegria com que Ethan Hawke comia a pasta dentífrica acabada de encontrar numa mala na cauda do avião, ao fim de semanas de fome, e gritava: “Delicious!”? Talvez porque passaram 30 anos. Porque uma ou duas gerações não viram Alive. Mas não será isso válido para todos os filmes alguma vez feitos? Será preciso refazê-los? Não será uma das vantagens do cinema justamente a de cristalizar as histórias e deixá-las disponíveis para sempre para quem se interesse por elas?
A verdade, em poucas palavras, é que A Sociedade da Neve é um bom filme. Produzido pelas netflixes espanhola e norte-americana, conduzido por J. A. Bayona (de O Orfanato, Impossível ou, mais recentemente, Mundo Jurássico: Reino Caído), venceu o festival de San Sebastián e é um dos fortes candidatos a fazer boa figura nos Óscares deste ano. A nomeação na categoria de Melhor Filme Internacional é quase garantida, mas pode aspirar a outras: Direção Artística, Guarda-Roupa, Maquilhagem, Banda Sonora (belo trabalho de Michael Giacchino – um Óscar já por Up – Altamente), som, montagem. Argumento adaptado?
Naturalmente, beneficia da evolução técnica de 30 anos de efeitos especiais: a sequência do desastre propriamente dito impressiona. Sentimos os embates, os ossos a quebrar. Também o elenco, se acaso estivéssemos num daqueles prémios que distinguem o ensemble, seria forte candidato. Os Andes, agora mais cinza na fotografia de Pedro Luque, nada perdem para a solidão esmagadora dos azuis de Marshall – pelo contrário. Chegará isso para justificar voltar a contar uma mesma história? Atores sul-americanos em vez de norte-americanos, diálogos em espanhol, língua original dos implicados, em vez de inglês – chegará?
No essencial, e embora seja adaptado a partir de um livro diferente, A Sociedade da Neve não tenta, particularmente, afastar-se de Alive. Essa é a sua maior fraqueza – e a sua maior virtude. Não tenta ser mais chocante, nem mais esperta, nem maior. Até cai no mesmo erro do voice-over irritante (na verdade, muito mais irritante, porque bem mais absurdo e presente do que o de John Malkovich). É talvez um pouco mais sentimental, um pouco mais próxima das personagens, mas mantendo-se elegante, contida (sentimental não é sentimentalista). E porque 30 anos depois de Alive e mais de “50” depois dos factos (e chegados a este ponto do texto, isto não pode contar como spoiler), sim, supera com distinção a pergunta que temos na cabeça desde o minuto um: “como é que os gajos terão tratado a questão do canibalismo?”. Resposta: com a mesma dignidade imensa de Alive. A dignidade imensa que a história merece. A dignidade que em 1972, como em 1993, como em 2024, nos põe em sentido.
Talvez, de vez em quando, o cinema precise mesmo de voltar a contar as mesmas histórias morais. Talvez. Como contamos, vezes sem conta, as mesmas histórias às nossas crianças. Estamos vivos. Mas alguém me explica como raio passaram 30 anos?