Em Pobres Criaturas, o novo filme do grego Yorgos Lanthimos (Canino, A Lagosta, A Favorita), baseado num romance do falecido escritor e ator escocês Alasdair Gray, Emma Stone interpreta uma rapariga que vive numa Londres vitoriana alternativa e cyberpunk, e que se atira de uma ponte, grávida, para se suicidar. É tirada do rio e salva por um cirurgião desfigurado, o Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe), que lhe substitui o cérebro pelo do seu bebé não-nascido e a rebatiza Bella Baxter, passando a considerá-la como uma experiência. A ressuscitada fica confinada à casa do médico e comporta-se como uma criança sem inibições, embora com a sexualidade de uma mulher adulta.

[Veja o trailer de “Pobres Criaturas”:]

Bella diz tudo da boca para fora, come com as mãos, cospe ou vomita a comida que não lhe agrada, urina no chão, tem fúrias em que parte o que tem ao alcance, assiste às pesquisas do Dr. Godwin com cadáveres e brinca com os pénis dos mortos, bem como com os animais frankensteinianos que aquele tem em casa, e tenta inserir objetos vários na vagina. Embora tenha sido avisada pelo médico contra o amor e a paixão por homens, Bella, que aspira conhecer horizontes e saciar os seus desejos, foge com Duncan (Mark Ruffalo), um advogado lúbrico, que a leva em viagem por várias cidades daquele mundo alternativo (incluindo uma Lisboa irreconhecível mas onde continua a haver pastéis de nata), enquanto ela o esgota com a sua fome sexual insaciável.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja uma entrevista com o realizador Yorgo Lanthimos:]

Em Paris, e sem fundos, Bella e Duncan zangam-se e separam-se, e a rapariga decide dedicar-se à prostituição num bordel, para ganhar dinheiro e prosseguir a sua educação sexual e o seu estudo da natureza humana. O que nos dá direito a ver Emma Stone nua em toda a sorte de atividades carnais com os frequentadores da casa, e a ter orgasmos em grande plano e sempre de olhos esbugalhados. O filme prossegue depois neste registo promíscuo-lunático-surreal, e se dúvidas havia que Yorgos Lanthimos é um dos maiores bluffs que já deram à costa do cinema nos últimos tempos, ficam todas tiradas em definitivo em Pobres Criaturas.

[Veja uma sequência de “Pobres Criaturas”:]

Com raras exceções (caso de A Favorita, o seu filme mais “normal” e por isso mais potável), Lanthimos escolheu a pose do exibicionismo “anti-convencional” (que logo se transformou na convenção do anti-convencional), do bizarro desconfortável (que cansa depressa) do “chocante” a todo o custo (que chateia mais do que choca). Pobres Criaturas é um gesto elaborado (ver a construção do mundo alternativo em que se passa), afetado (ver o abuso até à náusea da grande angular) e supostamente “ousado” (mas que se fica por um infantilismo de menino malcriado que diz palavrões, faz gestos obscenos e mostra o rabo às visitas), que não tem a suportá-lo um discurso minimamente interessante ou pertinente (e não me venham com a conversa de ser sobre a “libertação” e o “empoderamento” de uma mulher vítima da sociedade patriarcal).

Que esta risível e enfadonha mixórdia de ficção científica cyberpunk estapafúrdia, de pseudo-comédia sexual nonsense e de fantasia armada em feminista tenha ganho o Festival de Veneza, dois Globos de Ouro (um dos quais para a triste figura que passa por interpretação de Emma Stone), e esteja agora nomeado para nada menos do que onze Óscares, diz mesmo muito sobre o mundo em que vivemos, os tempos que atravessamos e naquilo em que se transformou o cinema e a sua receção e avaliação por quem o critica e decide prémios e recompensas. As “pobres criaturas” somos nós, os espectadores, isso sim.